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Entrevista do advogado Adacir Reis sobre a vitória na questão do CDC no STJ

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Inaplicabilidade do CDC: o advogado Adacir Reis comenta o julgamento do STJ

Em entrevista exclusiva ao AssPreviSite, o advogado Adacir Reis, que representou a Abrapp na defesa da tese jurídica da inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e é atualmente um dos advogados mais atuantes nos Tribunais Superiores, comenta o recente julgamento do STJ a respeito da vitória do setor na mudança da Súmula 321 e analisa o universo jurídico brasileiro.

ASSPREVISITE. O Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não se aplica às entidades fechadas de previdência complementar. Como foi isso?

ADACIR REIS. Foi um julgamento histórico. No último dia 26 de agosto, com os votos dos dez ministros que integram a Seção de Direito Privado, o STJ decidiu que o CDC não se aplica às entidades fechadas de previdência complementar. A decisão foi consumada no âmbito do Recurso Especial 1.536.786, leading case em que a Valia era a recorrente e o Ministro Luís Felipe Salomão o relator. Na prática, isso significou rever a Súmula 321, editada em 2005, a qual estabelecia que o CDC seria aplicável indistintamente para as “entidades de previdência privada”.

ASSPREVISITE. Como ocorreu esse debate pelo STJ?

ADACIR REIS. Trata-se de um processo evolutivo, de aprimoramento da jurisprudência. O STJ é o Tribunal que interpreta e garante a autoridade da legislação federal. Portanto, é o STJ que dá a última palavra em relação às Leis Complementares 108 e 109. Com a judicialização de inúmeros temas previdenciários, o STJ tem debatido com maior recorrência, e também profundidade, os comandos dessa legislação especial. Em nome da Abrapp, em conjunto com outros advogados que militam no setor, procuramos demonstrar que o universo das relações de consumo não é compatível com a realidade das entidades fechadas de previdência complementar.

ASSPREVISITE. Essa batalha foi muito difícil?

ADACIR REIS. Ao sermos mandatados pela Abrapp, há cerca de três anos e meio, para questionarmos a Súmula 321, procuramos fazer um diagnóstico realista e, a partir daí, desenvolver uma estratégia com os gerentes jurídicos e advogados das entidades previdenciárias. Em 2013 organizamos um livro, amplamente divulgado no Judiciário, com pareceres jurídicos, dentre eles o da minha professora na USP, Ada Pellegrini Grinover, Lygia Avena, a primeira a escrever sobre o tema e Maria da Glória Chagas Arruda, cuja tese acadêmica foi sobre essa questão. Fizemos encontros técnicos e seminários, inclusive com atuários de reconhecida competência como o Felinto Sernache e o Antônio Gazzoni. Na condição de advogados da tese jurídica da Abrapp e também de casos específicos de EFPCs, elaboramos memoriais e tivemos inúmeras audiências com os ministros do STJ, como ocorreu no leading case da Valia, levado ao plenário da Seção de Direito Privado, além de sustentações orais que fizemos da tribuna.

ASSPREVISITE. Quais os argumentos jurídicos utilizados pelos fundos de pensão?

ADACIR REIS. Na essência, a fundamentação jurídica da tese da Abrapp é simples. O CDC tem um arcabouço de proteção para o consumidor e por isso devemos celebrar seus vinte e cinco anos de existência. É uma boa lei. Entretanto, o CDC lida com conceitos como mercado de consumo, fornecedor, remuneração por serviços ou produtos, preço, publicidade, propaganda e práticas comerciais. Ora, toda essa nomenclatura é estranha ao mundo das entidades fechadas de previdência complementar, que se submetem a uma estrutura normativa específica. As entidades fechadas, como o nome já evidencia, são fechadas, ou seja, não são acessíveis a quaisquer pessoas físicas, não estão disponíveis no chamado mercado de consumo. São entidades sem fins lucrativos, tendo como única razão existencial prover benefícios previdenciários para seus associados. As contribuições feitas para o plano de benefícios decorrem de cálculos atuariais e não se enquadram em conceito de preço ou remuneração. Os participantes têm assento nas instâncias decisórias. Os resultados do plano coletivo repercutem para o conjunto dos participantes e assistidos, daí o associativismo e o mutualismo. Por fim, tais fundações são reguladas pelo Ministério da Previdência Social, não pela Fazenda.

ASSPREVISITE. A decisão unânime do STJ surpreendeu?

ADACIR REIS. Rever o entendimento sobre uma súmula, em um Tribunal Superior, não é algo banal. É muito raro. Mas esse julgamento é o ápice de um debate que se trava há vários anos. Na época da edição da Súmula 321, as Leis Complementares 108 e 109 ainda eram novas. Vários de seus dispositivos nem sequer estavam regulamentados. É uma evolução. Em uma análise retrospectiva da jurisprudência, vamos constatar que o julgamento sobre o descabimento do auxílio cesta alimentação foi um marco importante. Ali, em 2011 e 2012, a Ministra Maria Isabel Gallotti, que sempre se notabilizou por votos de profundidade, evidenciou nos precedentes da Fundação Banrisul, RESP 1.023.053/RS, e da Previ, RESP 1.207.071/RJ, os principais conceitos da Lei Complementar 109 e registrou que, em última instância, condenar a entidade significa a condenação da própria coletividade de participantes. O Ministro Luís Felipe Salomão, grande liderança no Tribunal e muito zeloso em seus julgamentos, já em 2011 destacava que os recursos de um plano previdenciário pertencem, na verdade, aos seus associados. Por ocasião do debate sobre a incorporação de abonos, o Ministro Antônio Carlos Ferreira abordou, com muita propriedade, a incongruência entre verbas de natureza transitória e os benefícios de aposentadoria com caráter permanente. O aspecto da presença dos participantes nas instâncias decisórias da EFPC foi sempre realçado pelo Ministro João Otávio, que além de um eminente jurista é formador de opinião. O RESP 1.425.326 fixou a tese da impossibilidade de concessão de verba não prevista no contrato e não amparada em custeio. Se você analisar a posição do Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, o qual tem muita vivência acadêmica e experiência, vai constatar que seus votos são conceitualmente de uma precisão admirável. Nessa questão específica do CDC, o Ministro Villas Boas Cueva foi relator de importante precedente da 3ª Turma, em um caso da Petros. O voto-vista do Ministro Marco Buzzi, no leading case da Valia, é uma peça brilhante. Os Ministros Raul Araújo e Paulo de Tarso Sanseverino, assim como os que chegaram ao Tribunal há menos tempo, Ministros Moura Ribeiro e Marco Aurélio Belizze, tem sido igualmente muito criteriosos no trato da previdência complementar. Também neste ano de 2015 a Ministra Gallotti protagonizou uma mudança de posição do Tribunal, que acabou com aquela anomalia de se aceitar questionamento, a qualquer tempo, de alteração de regulamento, criando nova jurisprudência, como se viu nos casos da MBM Previdência Privada e da Funcef. Acho que o julgamento sobre a competência da Justiça Comum pelo Supremo, em 2013, é outra referência obrigatória nessa mudança jurisprudencial.

ASSPREVISITE. Na sua avaliação, a tendência do contencioso das EFPCs vai diminuir?

ADACIR REIS. Ao que parece, o contencioso dos fundos fechados de previdência começou a cair, embora ainda seja preocupante. Com o crescimento exponencial de litígios, na forma verificada em anos anteriores, o sistema iria se inviabilizar. Mas penso que é sempre necessário discutir as razões dos conflitos, procurando entender a motivação dos que vão a juízo. Não se trata de demonizar fulano ou beltrano, mas identificar os motivos reais das demandas. As associações e os sindicatos exercem seu papel. Outro fenômeno é o da indústria de litígio. O Brasil tem hoje cem milhões de processos judiciais! É evidente que isso não é normal e não tem paralelo no mundo. Hoje há no Brasil mais de oitocentos mil advogados habilitados a advogar. Sem a inscrição na OAB há mais de um milhão de bacharéis. Em recente Encontro Nacional de Advogados da Previdência Complementar mencionei que na década de quarenta do século passado havia, nos Estados Unidos, cerca de 150 cursos de Direito. No Brasil, 21. Hoje, nas terras do Obama, há pouco mais de 200 cursos. E aqui? Mais de mil, precisamente 1298 cursos de Direito em funcionamento! Em Brasília, na capital da República, tem faculdade de direito funcionando em cima de padaria. Os kits convidando para se ingressar em juízo antes chegavam pelos Correios. Hoje chegam por whatsapp, facebook e twitter. É claro que tal realidade tem a ver com a litigiosidade e com a má distribuição da justiça.

ASSPREVISITE. A arbitragem e a mediação podem alterar esse quadro?

ADACIR REIS. A maioria dos cursos de Direito tem por objetivo capacitar o profissional para o enfrentamento. É um modelo adversarial obsoleto. Assim como na medicina, precisamos investir mais na prevenção. Espero que a Lei de Arbitragem atualizada, a Lei da Mediação e o novo Código de Processo Civil, todos promulgados neste ano de 2015, possam dar mais racionalidade à prevenção e à solução de conflitos. Nessa ótica é louvável o trabalho do Dr. Fábio Lucas e Dr. Danilo Ribeiro, ambos procuradores da Previc, na divulgação das múltiplas formas de composição de controvérsias.

ASSPREVISITE. Com a decisão do STJ para as EFPCs, como ficam as ações em curso que invocam o CDC?

ADACIR REIS. Continuam seu rito natural, mas terão que ser apreciadas à luz da legislação específica do setor. Não tem mais CDC, mas sim as Leis Complementares 108 e 109. O julgamento do RESP 1.536.786 já começou a irradiar seus efeitos em vários processos, inclusive em decisões monocráticas de ministros. Se me permite, Rual, gostaria de registrar que essas conquistas no Judiciário decorrem da conjugação de esforços dos advogados que atuam em juízo e dos gerentes jurídicos das fundações, especialmente daqueles que se envolveram diretamente na articulação da Abrapp e nos confiaram essa tese. A luta vitoriosa em relação ao CDC não teria sido possível sem o apoio decidido de toda a direção da Abrapp, na pessoa do Dr. José Ribeiro Pena Neto, do Dr. Devanir e do diretor jurídico, Dr. Luis Ricardo Martins, um grande incentivador desse trabalho, além do Cejuprev, hoje coordenado pelo Dr. José de Souza Mendonça. Gostaria também de agradecer ao Dr. Fernando Pimentel, presidente da Fundação Atlântico e ex-presidente da Abrapp, e ao Dr. Reginaldo Camilo, membro do Conselho Deliberativo da Abrapp, os quais sempre defenderam uma mobilização maior de esforços. O trabalho dos advogados Fábio Junqueira e Maria Inês Gurgel também foi valoroso, pois ambos conduziram o processo judicial da Valia desde a origem e o aparelharam para que pudéssemos atuar como advogados junto ao STJ, no caso específico, em nível de recurso e em nome dos interesses do sistema. O Dr. Rodrigo Carvalho, da Valia, deu um apoio decisivo nessa articulação. Sob a condução do Dr. Marcus Caldeira, o precedente da Petros, apreciado na 3ª Turma, foi também um passo relevante. Houve debates de alto nível com os chefes de jurídicos que integram a Comissão Jurídica Nacional da Abrapp, sob a coordenação do Dr. José Luiz Guimarães, da Previ. A construção dessa vitória foi erguida tijolo com tijolo, passo a passo. Na conquista recente que mencionei sobre prazo decadencial, em que a Abrapp e alguns fundos também se envolveram, vale registrar o importante trabalho do Jurídico da Funcef, na pessoa da Dra. Lucimara Moraes e Dra. Marlene Ribeiro, além do advogado Luiz Antônio Machado. Por fim, gostaria de agradecer minha equipe de escritório, na pessoa da colega Lara Corrêa, uma grande processualista, que sempre acreditou na virada da súmula 321. Mas como tem dito o Secretário Jaime Mariz em suas palestras, a disseminação dos conceitos previdenciários é um esforço contínuo, não pode parar, daí a importância desse extraordinário trabalho desenvolvido pelo AssPreviSite em favor da informação. Muito obrigado por esta oportunidade.

Fonte: Reis, Tôrres, Florêncio, Corrêa e Oliveira Advocacia, em 16.09.2015.