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Efeitos da recuperação judicial sobre o seguro garantia judicial

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Cassio

Cassio Amaral
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Mauri Viégas
Advogado do escritório Mattos Filho

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Sofia Carbonell
Advogada do escritório Mattos Filho

Com a derrocada da situação econômica nos últimos anos, o país está vivenciando uma onda sem precedentes de recuperações judiciais, tendo ganhado destaque os pedidos feitos por grandes companhias, as quais figuram como tomadoras de apólices de seguro garantia apresentadas no âmbito de processos judiciais em que são partes.

Diante desse novo cenário, desponta inevitável o questionamento sobre os efeitos dos pedidos de processamento de recuperação judicial e da homologação do plano de recuperação para as apólices de seguro garantia apresentadas nas execuções movidas contra a devedora com base em créditos sujeitos à recuperação.

No tópico seguinte, trataremos somente das repercussões para as garantias ofertadas no bojo de ações cíveis e trabalhistas, sendo os impactos para as garantias das execuções fiscais, não sujeitas, em tese, à recuperação judicial, analisadas no tópico subsequente.

Execuções cíveis e trabalhistas

Inicialmente, vale ressaltar que, com o deferimento do processamento da recuperação judicial, o juízo deve ordenar a suspensão de todas as ações ou exceções contra o devedor, nos termos do artigo 6º c/c o artigo 52, inciso III, da Lei de Falências e Recuperação de Empresas (“LFR”), pelo prazo máximo de 180 dias (§ 4º do referido artigo 6º) contado do deferimento do processamento da recuperação, o qual tem sido corriqueiramente prorrogado, especialmente quando não demonstrada desídia ou má-fé por parte da empresa recuperanda, preservando-se, assim, o interesse da coletividade dos credores (STJ – Agravo Regimental AgRg no Conflito de Competência CC 111614 DF 2010/0072357-6, publicado em 19.11.10).

Pois bem. Durante a suspensão das execuções trabalhistas e cíveis pelo prazo legal ou de outro modo fixado pelo juízo, não se pode exigir do devedor pagamento ou depósito dos respectivos créditos exequendos, muito menos o depósito ou pagamento de indenização securitária pela seguradora que tenha ofertado garantia para tais ações judiciais suspensas.

A seguradora, frise-se, não presta garantia contra o inadimplemento da obrigação que deu origem à pretensão executiva da credora, como poderia se dar por meio de um aval, por exemplo. Ela concede garantia ao juízo contra inadimplemento de obrigação processualmente definida na ação judicial. Dessa forma, não se aplica às seguradoras, portanto, o disposto no artigo 49, §1º, da LFR, segundo o qual “os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso”.

A responsabilidade da seguradora emitente da apólice de seguro garantia judicial é condicionada, limitada e subsidiária, ou seja, a seguradora se obriga (garante) a depositar a indenização securitária no respectivo juízo (i) caso o tomador sucumba na ação judicial contra ele movida, o que, nas ações cíveis e trabalhistas, somente se afere após o trânsito em julgado, (ii) sempre se respeitando o limite máximo de garantia previsto na apólice e (iii) desde que se comprove o inadimplemento da tomadora com relação ao pagamento do crédito exequendo, quando exigível, nos termos da lei processual.

Por outro lado, vale ressaltar que o artigo 59, caput, da LFR dispõe que a homologação do plano de recuperação implica novação sui generis dos créditos anteriores ao pedido, obrigando o devedor e todos os credores a ele sujeitos “sem prejuízos das garantias”.

Tais garantias a que se refere o artigo 59, em linha com o disposto no artigo 49, §1º, acima referido, entretanto, devem ser entendidas como sendo aquelas dadas no âmbito dos negócios jurídicos cujos créditos estejam sujeitos à recuperação judicial e não às garantias securitárias ofertadas para segurança das ações judiciais.

Em outras palavras, a apólice de seguro garantia judicial não se presta a garantir o direito material subjacente, o qual já teria sido inadimplido pela tomadora, motivo pelo qual, diga-se de passagem, a credora move a ação. A garantia prestada pela apólice materializa sim uma verdadeira garantia do juízo, não podendo, sob qualquer ângulo e para quaisquer efeitos, ser equiparada às garantias a que se refere o artigo 49, §1º, e o artigo 59, ambos da LFR, contra as quais se abre a possibilidade de o credor perseguir seu crédito direta e independentemente contra o garantidor coobrigado (REsp 1333349/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 26/11/2014, DJe 02/02/2015).

Por outro lado, não se pode cogitar que a apólice de seguro garantia judicial cobriria a obrigação novada, passando o seguro a cobrir o inadimplemento das obrigações assumidas pela recuperanda (tomadora) nos termos do plano de recuperação, tendo em vista que o risco de inadimplemento no âmbito de uma ação judicial e o risco de crédito representado pelo descumprimento do plano de recuperação são completamente diferentes, não podendo ser acompanhado pela seguradora, exceto se com isso ela anuir expressa e previamente.

Finalmente, convém ressaltar que a quarta turma do Superior Tribunal de Justiça, por meio do belíssimo voto condutor do ministro Luis Felipe Salomão, já assentou que execuções individuais ajuizadas contra a recuperanda devem ser extintas (e não apenas suspensas) com a homologação do plano de recuperação (STJ, Recurso Especial nº 1.272.697/DF, Quarta Turma, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 02.06.2015), sendo razoável se concluir pela extinção, por via de consequência, das respectivas garantias apresentadas ao juízo por terceiros, incluindo as garantias securitárias.

Execuções fiscais

Ao passo que nas execuções cíveis e trabalhistas o acionamento do seguro garantia fica condicionado ao trânsito em julgado da ação, nas execuções fiscais o sinistro pode ser verificado antes mesmo de definitivamente encerrado o processo.

Nos termos da Circular SUSEP nº 477/13, bem como da Portaria PGFN nº 164/14, que trata dos requisitos para a aceitação de seguro garantia em execução fiscal de débitos inscritos em dívida ativa da União, resta caracterizado o sinistro quando do não pagamento do valor executado pelo tomador, uma vez assim determinado pelo juízo.

Daí já se extrai (i) a subsidiariedade da responsabilidade das seguradoras diante do débito garantido, visto que o sinistro somente ocorre diante do não atendimento da intimação para pagamento do tomador e (ii) que apenas é relevante a determinação do juízo para pagamento, não necessariamente quando do trânsito em julgado.

Também consta dos referidos normativos que a seguradora será obrigada a depositar o valor garantido se até 60 dias antes do vencimento da apólice, esta não for renovada ou substituída pelo tomador.

Nesse contexto, em sede de execução fiscal, há risco de acionamento do seguro nos seguintes momentos: (i) recebimento dos embargos à execução sem efeito suspensivo; (ii) quando proferida sentença que julga improcedentes ou extingue sem exame de mérito os embargos à execução fiscal, sem que seja atribuído efeito suspensivo ao recurso de apelação, (iii) quando transitada em julgado decisão final de improcedência ou de extinção sem apreciação do mérito dos embargos à execução ou da ação que discute a procedência dos créditos executados e (iv) quando não substituída ou renovada a garantia em até 60 dias antes do seu vencimento.

Destaque-se que os itens “i” e “ii” dizem respeito a matérias controvertidas nos tribunais, haja vista ser discutível se, diante do regime específico da Lei de Execuções Fiscais (“LEF”), seria possível o recebimento de embargos à execução fiscal sem efeito suspensivo, bem como se poderia o seguro garantia judicial ser acionado antes do trânsito em julgado, frente a sua equiparação a depósito judicial, conforme se extrai da LEF (artigos 9º, § 3º, 15, I, e 32, § 2º) e do quanto disposto no artigo 835, §2º, do Novo Código de Processo Civil.

Ao contrário do que se dá nas execuções de natureza cível e trabalhista, a execução fiscal não deve ser suspensa em razão do deferimento da recuperação judicial. Nesse sentido, o artigo 187 do Código Tributário Nacional dispõe que “a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento”. Seguindo a mesma tônica, o artigo 5º da LEF prevê que “a competência para processar e julgar a execução da Dívida Ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro Juízo, inclusive o da falência, da concordata, da liquidação, da insolvência ou do inventário”.

Ainda mais específico no tocante ao prosseguimento da execução fiscal, consigna o artigo 6º, § 7º, da LFR que “as execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a condição de parcelamento”.

Entretanto, a jurisprudência, especialmente o STJ, tem relativizado estes comandos. Isso se dá, principalmente, pelo fato de que, via de regra, as empresas em recuperação judicial possuem expressivo passivo fiscal, de modo que prosseguir com os atos de expropriação no âmbito das execuções fiscais certamente comprometeria o plano de pagamento futuro de outros credores e, consequentemente, o desfecho da recuperação e a continuidade da atividade produtiva.

De fato, eventual penhora de ativos e/ou leilão de bens da empresa recuperanda em sede execução fiscal que tramite independentemente colocaria em cheque o atendimento do quanto previsto no plano aprovado no bojo da recuperação judicial, o que, por sua vez, esvaziaria o seu propósito, voltado especialmente para a preservação da empresa.

Nesse contexto, a 2ª Seção do STJ, competente para julgamento das questões cíveis do Superior Tribunal, possui entendimento consolidado no sentido de que, a despeito de não ficarem suspensas as execuções fiscais, os atos de expropriação destes processos devem ser submetidos ao juízo da recuperação judicial (CC 116.213/DF).

No âmbito da 1ª Seção da Corte Superior, competente para julgamento das questões de direito público, o entendimento é controvertido entre as duas Turmas que a compõem. A 1ª Turma possui entendimento consolidado pela submissão dos atos de expropriação ao juízo da recuperação judicial (p. ex. AgInt no AREsp 777387 / SC). A 2ª Turma, por sua vez, afirma que a execução fiscal apenas poderia ser suspensa se o deferimento da recuperação judicial se desse mediante o oferecimento de certidão negativa de débitos da empresa recuperanda. Caso o processamento da recuperação tenha se dado independentemente de tal exigência, deveria seguir normalmente execução fiscal, inclusive os atos de expropriação (REsp. 1.512.118/SP).

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, declarou ser da 2ª Seção a competência para solucionar os conflitos de competência entre o juízo da recuperação judicial e o juízo da execução fiscal (QO no CC nº 120.432).

Percebe-se, portanto, forte tendência do STJ para o reconhecimento de que, ainda que se possa admitir o prosseguimento das execuções fiscais concomitantemente com o processamento da recuperação judicial, quaisquer atos constritivos ou de expropriação da garantia prestada na execução fiscal devem passar pelo crivo do juízo da recuperação, incluindo o acionamento do seguro garantia judicial para execução fiscal.

Assim, ainda que a condição fixada na apólice para reclamação de sinistro se implemente em sede de execução fiscal movida em face de empresa em recuperação judicial, não poderia o juízo da execução fiscal determinar o seu acionamento, sendo reservada a competência para a prática de tal ato ao juízo da recuperação judicial.

Sanada a questão da competência para excussão da garantia, tem-se que, com o pagamento da indenização pela seguradora após o deferimento do processamento da recuperação judicial, o crédito desta em face da tomadora teria natureza extraconcursal, não se submetendo, portanto, ao plano de recuperação judicial, uma vez que é crédito decorrente de obrigações contraídas pelo devedor durante a recuperação judicial, nos termos do artigo 67 da LRFE.

Se não se considerar o crédito da seguradora decorrente do pagamento da indenização securitária após o deferimento do pedido de processamento da recuperação judicial um crédito extraconcursal, que, então, ao menos, seja ele considerado, para fins de classificação no seio da recuperação, um crédito de natureza fiscal, não nos parecendo lícito ao juízo da recuperação tentar desconsiderar a sua real natureza extraconcursal e enquadrá-lo como um crédito quirografário.

Conclusão

O mero deferimento do processamento do pedido de recuperação e/ou a homologação do plano de recuperação judicial não são eventos idôneos a legitimar o acionamento das apólices de garantia judicial pelo juízo garantido ou pelo juízo da recuperação.

Ademais, a seguradora que segura o juízo não pode ser equiparada ao garantidor coobrigado do direito material subjacente, de maneira que contra ela não se pode dar continuidade à execução cível ou trabalhista garantida e suspensa. Além disso, com a homologação do plano de recuperação judicial e consequente novação dos créditos a ele sujeitos, as respectivas ações judiciais cíveis e trabalhistas até então suspensas devem ser extintas, com a consequente extinção das garantias securitárias.

No caso do seguro garantia prestado em sede de execução fiscal, via de regra, o sinistro se caracteriza com o não pagamento do tomador quando determinado pelo juízo, o que pode se dar antes mesmo do trânsito em julgado, apesar de haver controvérsia nos tribunais quanto a este último ponto. Além disso, a despeito da controvérsia nos tribunais inferiores, o STJ tende a decidir pela incompetência do juízo da execução fiscal para acionamento do seguro garantia, devendo tal ato ser submetido ao juízo da recuperação judicial. Finalmente, tem-se que, caso a seguradora venha a pagar a indenização no bojo da execução fiscal garantida após o deferimento do processamento da recuperação judicial, o seu crédito em face da tomadora teria natureza extraconcursal.

Fonte: Revista Opinião.Seg nº 14 - Julho de 2017.