EFPC – Conheça um pouco mais sobre as obras e o pensamento dos grandes nomes que inspiram os painéis do VII Seminário IPCOM & APEP


Por Ana Paula De Raeffray (*)
Byung-Chul Han e os novos rumos da Previdência Privada
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em obras como Sociedade do Cansaço (2015) e A Sociedade da Transparência (2017), descreve um mundo marcado pelo excesso de positividade, desempenho e transparência, que, paradoxalmente, gera exaustão e falta de confiança. Essa reflexão pode iluminar os caminhos da previdência privada brasileira, especialmente no desafio de fomentar alternativas sustentáveis para o setor.
Ele nos mostra, também, que se vive na “sociedade do desempenho”, marcada pela autoexploração e pela precarização das relações de trabalho (Sociedade do Cansaço, 2015). A ascensão da denominada gig economy, do trabalho flexível e da instabilidade profissional fragiliza também o financiamento previdenciário de longo prazo.
Nesse cenário, a previdência privada precisa se reinventar: criar alternativas de fomento que dialoguem com a nova realidade laboral – com maior flexibilização para a portabilidade e para os regimes contributivos, propiciando investimentos que deem sentido coletivo à poupança.
Como, ainda, alerta Han em Psicopolítica (2018), “a liberdade se converte em coação”, e isso se reflete nos desafios previdenciários: é urgente pensar mecanismos que unam segurança social, inovação e confiança para além da lógica do cansaço.
A previdência complementar precisa oferecer mais do que acúmulo de reservas: deve projetar sentido coletivo – proteção na velhice, solidariedade intergeracional e incentivo à poupança de longo prazo. Assim como Byung-Chul Han denuncia os paradoxos da sociedade contemporânea, a previdência privada precisa superá-los, abrindo espaço para confiança, inovação e sentido coletivo.
Martin Heidegger e a Previdência Privada: investimentos como projeto de existência
Martin Heidegger chama de Dasein o ser humano entendido como “ser-aí”, ou seja, aquele que está lançado no mundo e precisa lidar com sua existência. Diferentemente de coisas ou objetos (que simplesmente “estão”), o Dasein existe: ele não é estático, mas se constitui na abertura para possibilidades. Ele lembra, também, que existir é projetar-se no tempo, assumir riscos e abrir-se a possibilidades. Essa perspectiva filosófica ilumina um dos grandes desafios da previdência privada: a busca por equilíbrio entre segurança e inovação no campo dos investimentos.
Ao tratar do futuro, Heidegger fala do ser-para-o-porvir, uma dimensão que não pode ser ignorada. Do mesmo modo, os gestores das entidades de previdência privada precisam considerar horizontes de longo prazo em suas decisões de alocação. Os investimentos alternativos – como infraestrutura, private equity e ativos ligados à transição energética, por exemplo – tornam-se expressões desse “projeto de futuro”, pois sinalizam possibilidades que vão além do imediato.
Os investimentos na Previdência Privada não são apenas resultado, guardando, na verdade, o projeto existencial da comunidade protegida. A prudência deve conviver com a abertura à inovação.
A Previdência Privada, assim, pode ser vista como um espaço onde o pensamento de Heidegger ganha concretude: a gestão de investimentos como projeto de existência coletiva, em que risco e segurança se entrelaçam para garantir não apenas rendimentos, mas também sentido.
Heidegger nos lembra que o ser humano não é estático: existir é estar sempre em movimento, aberto ao futuro e às possibilidades. Somos seres de projeto – vivemos não apenas pelo que somos hoje, mas pelo que podemos vir a ser. Na previdência privada, isso ganha um sentido especial. Investir é projetar: cada decisão não se esgota no presente, mas constrói o amanhã de milhares de pessoas.
Paul Ricoeur e a Previdência Privada: Projeto, Tempo e Interferências Jurídicas
O filósofo francês Paul Ricoeur destacou, em sua obra “Tempo e Narrativa” (1983-1985), que a vida humana só se torna inteligível quando narrada como um projeto, articulando passado, presente e futuro. Essa ideia é particularmente fértil para se pensar a previdência privada.
A previdência privada não é apenas um mecanismo financeiro: é um projeto de vida. Ela depende da capacidade de antecipar o futuro, planejar o presente e dar sentido ao percurso do trabalho até a aposentadoria. Assim como Ricoeur observa na narrativa, o planejamento previdenciário organiza o tempo da existência em uma história coerente, na qual poupança, contribuição e benefício se encadeiam como capítulos de uma mesma trajetória.
Como em qualquer narrativa, entretanto, há interferências externas que podem alterar o enredo. No campo da previdência privada, as interferências jurídicas – novas leis, alterações regulatórias (CNPC, CMN, PREVIC, TCU), disputas judiciais – reescrevem partes da história do participante.
Para Ricoeur, o tempo humano é sempre tempo interpretado. Isso significa que não há neutralidade: as normas jurídicas não apenas disciplinam, mas reinterpretam o sentido da previdência. O projeto individual e coletivo de poupança de longo prazo precisa dialogar com essas “reescritas jurídicas”, ajustando-se sem perder sua coerência.
De outra face, em “O Justo” (1995), Ricoeur lembra que a justiça é o lugar de equilíbrio entre a universalidade da regra e a singularidade do caso, tendo em vista que o reinterpretar normas, o Poder Judiciário pode quebrar a coerência narrativa da previdência privada como contrato, alterando as expectativas legitimamente construídas pelas partes contratantes.
Assim, aplicar o pensamento de Ricoeur à previdência privada significa reconhecer que a previsibilidade jurídica é mais que técnica: é a condição para que o projeto de proteção previdenciária não seja interrompido por determinações que desequilibrem a relação contratual.
O Princípio Responsabilidade de Hans Jonas e a Avaliação de Risco na Previdência Privada
Os riscos de longo prazo enfrentados na gestão do contrato de previdência privada são diversos: longevidade, solvência atuarial, volatilidade dos mercados, sustentabilidade intergeracional, dentre outros. Para lidar com tais riscos, a reflexão filosófica de Hans Jonas oferece um horizonte ético essencial, sobretudo a partir de sua obra O Princípio Responsabilidade (1979).
Jonas adverte que a ética contemporânea não pode restringir-se ao presente imediato. A técnica e as instituições humanas projetam efeitos que se estendem para gerações futuras. Sua máxima é clara: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra.” (O Princípio Responsabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 47).
Aplicado à previdência privada, isso significa que as decisões de investimento e de gestão não devem buscar apenas resultados de curto prazo, mas assegurar a viabilidade dos benefícios para as próximas décadas. Jonas associa a responsabilidade à prudência diante do risco.
Na governança das entidades de previdência privada, traduz-se tal diretiva na necessidade de políticas de risco seguras e tempestivas, evitando tanto a exposição excessiva a ativos voláteis quanto a omissão diante de déficits atuariais. A prudência, neste contexto, não é imobilismo, mas ação preventiva.
A gestão de planos de previdência privada é fundada na responsabilidade fiduciária dos gestores. É, ao fim e ao cabo, uma responsabilidade contratual que Jonas bem avalia sob a ótica da lealdade: “(…) na medida em que o objeto final da responsabilidade, mais além do objeto direto, ou seja, a verdadeira “causa”, é a garantia das relações de lealdade sobre as quais se fundam a sociedade e a vida coletiva: (…)”. (JONAS, 2006, p. 171).
A filosofia de Hans Jonas desafia as entidades de previdência privada a assumirem uma ética da responsabilidade na avaliação de risco: considerar não apenas os parâmetros técnicos e normativos, mas também o imperativo ético de garantir a sustentabilidade dos planos para as futuras gerações. Ao integrar prudência, responsabilidade e intergeracionalidade.
Amartya Sen e a Previdência Privada como Instrumento de Desenvolvimento
Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia e um dos pensadores mais influentes no campo do desenvolvimento humano, propõe uma abordagem que vai além dos indicadores econômicos tradicionais. Para ele, desenvolvimento significa liberdade – e não apenas crescimento do PIB. Trata-se da capacidade das pessoas de viverem a vida que valorizam, com segurança, dignidade e autonomia.
Essa visão é particularmente relevante quando aplicada à previdência privada, que integra os sistemas de proteção social ao redor do mundo, mas, por vezes, é compreendida apenas sob a ótica atuarial ou fiscal. A previdência privada, quando bem estruturada, pode ser um poderoso instrumento para a ampliação de liberdades e, portanto, um meio de desenvolvimento no sentido pleno proposto por Sen.
Em "Desenvolvimento como Liberdade", Sen distingue entre dois papéis da liberdade: instrumental e constitutiva. A previdência privada pode ser pensada nesses dois planos:
Instrumentalmente, contribui para a segurança econômica das pessoas, permitindo-lhe planejar o futuro, evitar a pobreza na velhice e tomar decisões com menor vulnerabilidade.
Constitutivamente, é expressão da liberdade de escolha: participar de um plano de previdência é uma manifestação concreta da autonomia individual, da capacidade de escolher como proteger-se e projetar seu futuro.
Mais do que um produto financeiro, a previdência privada deve ser entendida, também, como caminho para o desenvolvimento humano. Nesse sentido, cabe aos formuladores de políticas públicas, gestores de fundos de pensão e lideranças institucionais refletir: estamos promovendo liberdades reais por meio da previdência?
Nas palavras de Sen: “Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liberdade seja colocada no centro do palco. Nessa perspectiva, as pessoas tem de ser vistas como ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na conformação de seu próprio destino, e não apenas como beneficiárias passivas dos frutos de engenhosos programas de desenvolvimento”. (“Desenvolvimento como Liberdade” – 1999). A lição de Sen é clara: desenvolver é libertar. E libertar é criar condições para que cada indivíduo possa planejar, escolher e viver com dignidade todas as etapas da vida. A previdência privada, integrada a uma política previdenciária inclusiva, pode ser um dos pilares dessa liberdade.
(*) Ana Paula De Raeffray é Professora dos cursos de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Diretora Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Previdência Complementar e Saúde Suplementar – IPCOM e sócia titular do Raeffray e Brugioni Advogados.
(18.09.2025)