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É obrigatório o seguro de incêndio para mercadorias depositadas em armazéns gerais?

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Paulo Sogayar Jr

Paulo Sogayar Jr.

I – Introdução

O presente considera a atividade de armazém geral quando ele atuar como “depositário fiel”, ou seja, quando receber mercadorias de clientes para serem armazenadas[1]. Não é objeto desse estudo o sistema de armazenagem de produtos agropecuários, regulado pela Lei 9.973/2000 e Decreto 3.855/2001.

O foco do presente é o Decreto 1.102/1903[2] (“Decreto 1.102”), legislação específica para armazéns gerais, o qual, de acordo com a jurisprudência[3], não foi revogado pelo antigo Código Civil em razão de sua especialidade, havendo vários julgados atuais aplicando preceitos do Decreto 1.102 aos armazéns gerais, especialmente em relação à prescrição. Nada obstante, também há pontos do Decreto 1.102 que a atual jurisprudência não tem aplicado, como, por exemplo, a pena de prisão[4], mormente após a revogação da Súmula 619[5] STF, em 05/06/2009, e da edição da Súmula Vinculante 25[6] STF, em 23/12/2009.

II – Propriedade dos bens depositados

Os depósitos podem ser de bens infungíveis (não podem ser substituídos) ou fungíveis (bens móveis que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade).

No atual Código Civil[7], assim como no anterior[8], há disposição no sentido de normatizar o depósito de coisas fungíveis (também denominado depósito irregular), em que o depositário se obriga a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, pelas regras do mútuo, sendo próprio do mútuo a transferência da propriedade do bem.

Essa regra não se coaduna com a ideia e preceitos do Decreto 1.102, posto que, da análise do aludido Decreto, verifica-se que as mercadorias depositadas jamais passam para a propriedade do armazém geral[9].

Assim, e em razão da especificidade do Decreto 1.102, consideramos que os bens depositados em armazéns gerais continuam sendo de propriedade dos depositantes[10].

III – Duas formas de depósito

O Decreto 1.102 regula duas formas distintas de depósito: (i) bens de vários proprietários, porém da mesma natureza e qualidade, que podem ser guardados misturados (artigo 12 do Decreto 1.102), para o que os armazéns gerais deverão dispor de lugares próprios (denominaremos essa forma de depósito como “Depósito Misturado”) e, (ii) depósito normal de bens (“Depósito Normal”).

IV – Prescrição trimestral

De acordo com o artigo 11[11] do Decreto 1.102, o direito à indenização do depositante em face do armazém geral prescreve em 3 (três) meses.

A jurisprudência[12] atual tem mantido o prazo prescricional trimestral em relação aos armazéns gerais.

Especificamente em relação à ação regressiva de cobrança da seguradora em face ao causador do dano, há entendimento de que o início do prazo prescricional trimestral seria a data em que a seguradora efetua o pagamento da indenização securitária ao segurado, pois é partir desse momento que ela se sub-roga nos direitos daquele, conforme decidido no REsp 1.505.256/SP[13], julg. em 05/05/2016:

“RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE MARÍTIMO. ARMAZENAGEM DE MERCADORIA. AÇÃO REGRESSIVA DE COBRANÇA DE SEGURADO CONTRA SEGURADORA. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. SUB-ROGAÇÃO. LIMITES.

1. Ao efetuar o pagamento da indenização ao segurado em decorrência de danos causados por terceiro, a seguradora sub-roga-se nos direitos daquele, mas nos limites desses direitos, ou seja, a “sub-rogação não transfere à seguradora mais direitos do que aqueles que a segurada detinha no momento do pagamento da indenização” (REsp n. 1.385.142).

Portanto, dentro do prazo prescricional aplicável à relação jurídica originária, a seguradora sub-rogada pode buscar o ressarcimento do que despendeu com a indenização securitária.

2. Recurso especial conhecido e provido.”

V – Seguro de incêndio previsto no Decreto 1.102

O artigo 16 do Decreto 1.102 prevê:

“Art. 16 – As mercadorias, para servirem de base à emissão dos títulos, devem ser seguradas contra riscos de incêndio no valor designado pelo depositante.

Os armazéns gerais poderão ter apólices especiais ou abertas, para este fim.

No caso de sinistro, o armazém geral é competente para receber a indenização devida pelo segurador, e sobre esta exercerão a Fazenda Nacional, a empresa de armazéns gerais e os portadores de conhecimento de depósito e ‘warrants’, os mesmos direitos e privilégios que tenham sobre a mercadoria segurada.

Parágrafo único – As mercadorias de que trata o art. 12 serão seguradas em nome da empresa do armazém geral, a qual fica responsável pela indenização, no caso de sinistro.”

Embora referido artigo permita mais de uma interpretação, considerando que ele se encontra no Capítulo II do Decreto 1.102, que trata da “Emissão, circulação dos títulos emitidos pelas empresas de armazéns gerais”, ou seja, que o foco do Capítulo II do Decreto 1.102, assim como do seu artigo 16 (caput e parágrafo único), não é a contratação de seguro[14], entendemos que não é em qualquer situação que o seguro de incêndio mencionado no artigo 16 deva ser contratado, ao menos pelo armazém geral.

Nos termos do caput do citado artigo 16, notadamente quando menciona “para servirem de base à emissão dos títulos”, entendemos que as mercadorias que devem ser seguradas contra riscos de incêndio são apenas aquelas que sirvam de base para a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”.

Também consideramos que o caput do artigo 16 trata de regra geral, aplicável tanto para Depósitos Normais quanto para Depósitos Misturados, ainda que o artigo 16 do Decreto 1.102 tenha feito menção específica, no parágrafo único, sobre as mercadorias do artigo 12, o que acima denominamos “Depósito Misturado”.

Destarte, concluímos que o parágrafo único do artigo 16 não excepcionou ou afastou a regra geral do caput, qual seja, que as mercadorias depositadas em armazéns gerais (seja via Depósito Normal ou via Depósito Misturado), se servirem de base para a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, devem ser seguradas contra riscos de incêndio pelo armazém geral.

Consequentemente, na hipótese de o depositante não solicitar a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, entendemos, tanto para Depósitos Normais, quanto para Depósitos Misturados que, em relação aos bens depositados, não haveria necessidade de o armazém geral fazer o seguro contra riscos de incêndio, eis que o seguro serviria exatamente para resguardar os mencionados títulos, na hipótese de ocorrência de incêndio.

Neste sentido, cita-se o entendimento do i. Prof. Fran Martins (ob. cit. pág. 361):

“Emitidos unidos, a pedido dos depositantes, o conhecimento de depósito e o ‘warrant’ substituem o recibo de depósito da mercadoria passado pelos armazéns-gerais ao lhes ser esta entregue. Só poderão, entretanto, esses títulos ser emitidos se sobre as mercadorias for feito seguro contra incêndio, sendo o seguro das mercadorias fungíveis feito em nome da empresa de armazéns-gerais, que ficará responsável pela indenização em caso de sinistro (art. 16)”.

Na situação em que o depositante solicitar a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, é condição para a emissão de tais títulos, a contratação por parte do armazém geral de seguro contra riscos de incêndio e, nessa circunstância, o seguro contra incêndio (referente aos bens depositados e sobre os quais tenham sido emitidos os citados títulos) é de caráter obrigatório, inclusive ante a determinação imposta pelo vocábulo “devem”.

Portanto, nada obstante tratar-se de seguro obrigatório, verifica-se que o próprio Decreto 1.102 limitou as situações em que referido seguro deve ser feito, prevendo, expressamente, que as mercadorias que devem ser seguradas são aquelas que servirão de base à emissão dos títulos de “conhecimento de depósito” e do ”warrant”.

VI – Decreto-Lei 6.319/1944

O Decreto-Lei 6.319/1944 (“Decreto-Lei 6.319”) dispôs sobre o “prazo e seguro contra riscos de incêndio de mercadorias depositadas em Armazéns Gerais”.

É possível se argumentar que o Decreto-Lei 6.319 também teria tratado da matéria, impondo, de um modo geral, a obrigatoriedade do seguro contra riscos de incêndio de mercadorias depositadas em armazéns gerais.

Todavia, consideramos que o citado Decreto-Lei não criou uma obrigatoriedade geral e ampla de contratação de seguro contra riscos de incêndio de mercadorias depositadas em armazéns gerais.

Com efeito, referido Decreto-lei faz expressa remissão ao artigo 16 do Decreto 1.102, não se tratando de nova hipótese de contratação de seguro contra riscos de incêndio, ainda mais desvinculada da emissão de títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”.

Aliás, o artigo 1º[15] do Decreto-Lei 6.319 é claro em mencionar tais títulos (“seus consequentes títulos”) e também o artigo 16 do Decreto 1.102.

O Decreto-Lei 6.319 apenas tratou de situação específica, a ser disciplinada por meio de regular portaria, no tocante a mercadorias adquiridas no Brasil, em virtude de convênios internacionais e que sejam depositadas nos armazéns gerais em nome do Governo do país comprador (ou de seus agentes ou mandatários oficiais), possibilitando, nessa situação e de forma excepcional, que o seguro previsto no artigo 16 do Decreto 1.102 não seja contratado, desde que os riscos de incêndio estejam a cargo do Governo comprador.

Assim, consideramos que permanecem válidas as limitações do Decreto 1.102, ou seja, que a obrigatoriedade na contratação de seguro contra riscos de incêndio por armarzém geral decorreria apenas para os casos em que as mercadorias depositadas serviriam de base para a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, desde que não se verifique a situação excepcional de os riscos de incêndio ficarem a cargo do Governo comprador das mercadorias depositadas em armazéns gerais.

VII – Decreto-Lei 73/1966 e Decreto 61.867/1967

O Decreto-Lei 73/1966 (“Decreto-Lei 73”), em seu artigo 20, e o Decreto 61.867/67 (“Decreto 61.867”), em seu artigo 18, regulam a contratação obrigatória de alguns tipos de seguro, dentre eles, a contratação de seguro contra incêndio, conforme, respectivamente:

“Art. 20 – Sem prejuízo do disposto em leis especiais, são obrigatórios os seguros de:

h) incêndio e transporte de bens pertencentes a pessoas jurídicas, situados no País ou nele transportados;”

“Art. 18 – As pessoas jurídicas, de direito público ou privado, são obrigadas a segurar, contra os riscos de incêndio, seus bens móveis e imóveis, situados no País desde que, localizados em um mesmo terreno ou terrenos contíguos, tenha, isoladamente ou em conjunto, valor igual ou superior a vinte mil cruzeiros novos.”

De acordo com os artigos acima, desde que preenchidos os requisitos legais retro mencionados, entendemos que o seguro de incêndio deve ser feito pela pessoa jurídica que seja a “proprietária” dos citados bens.

De acordo com o artigo 112 do Decreto-Lei 73/66 e do artigo 76 da Resolução CNSP 243/11, as pessoas que deixarem de contratar seguros legalmente obrigatórios, sem prejuízo de outras sanções legais, poderão ficar sujeitas à penalidade de multa, correspondente ao dobro do valor do prêmio, quando este for definido na legislação aplicável e, nos demais casos, o que for maior entre 10% (dez por cento) da importância segurável ou R$ 1.000,00 (mil reais).

VIII – Decreto 1102 x Decreto-Lei 73 e Decreto 61.867

Como acima exposto, a legislação não é clara e permite interpretações diversas.

De qualquer forma, na hipótese de o depositante de bens em armazém geral não solicitar a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, entendemos, tanto para Depósitos Normais, quanto para Depósitos Misturados, que o armazém geral não estaria obrigado a fazer o seguro obrigatório contra riscos de incêndio em relação a tais bens depositados (sobre os quais não foram emitidos os citados títulos)[16].

Nessa situação, o seguro obrigatório contra riscos de incêndio sobre tais bens depositados, com base no Decreto-Lei 73/66 e no Decreto 61.867, deveria ser feito pela depositante pessoa jurídica, proprietária dos bens depositados no armazém geral[17].

Por outro lado, na hipótese de o depositante de bens em armazém geral solicitar a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, tanto para Depósitos Normais, quanto para Depósitos Misturados, que o armazém geral estaria obrigado a fazer o seguro obrigatório contra riscos de incêndio em relação a tais bens depositados, no valor a ser informado pelo depositante.

Ocorre que, nessa situação, e considerando que o depositante (pessoa jurídica) continua sendo o proprietário dos bens depositados no armazém geral, haveria também a obrigação de o depositante contratar o seguro obrigatório contra riscos de incêndio com base no Decreto-Lei 73/66 e Decreto 61.867. Não faz sentido, todavia, se exigir a contratação do seguro contra incêndio por parte do armazém geral e também, em duplicidade, por parte do depositante, dono das mercadorias. O seguro contra incêndio contratado pelo armazém geral deveria ser suficiente para liberar o depositante de contratar novo seguro contra incêndio. Nessa situação, sugerimos consultar o órgão regulador sobre ser suficiente apenas o seguro contratado pelo armazém geral, liberando-se o depositante de contratar o mesmo seguro, ainda que as mercadorias depositadas sejam de sua propriedade.

IX – Conclusão

O seguro contra incêndio de mercadorias depositadas em armazéns gerais é obrigatório para o depositante (quando ele não solicitar a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”) ou para o armazém geral (quando o depositante solicitar a emissão de tais títulos). Nessa última hipótese, como a propriedade dos bens depositados ainda é dos depositantes, eles também deveriam fazer o seguro obrigatório contra incêndio, por força do Decreto-Lei 73/66 e do Decreto 61.867. Ocorre que não faz sentido também se obrigar o depositante a efetuar o mesmo seguro contratado pelo armazém geral, devendo o seguro contra incêndio feito pelo armazém geral ser suficiente para liberar o depositante dessa contratação, tendo sido sugerido, nessa última hipótese, para maior resguardo do depositante, a formulação de consulta ao órgão regulador.



[1] O presente não trata das seguintes hipóteses de atuação do armazém geral: quando a área comum de armazenagem for considerada um estabelecimento autônomo, como sede ou filial do cliente e nem quando a sua obrigação principal do for a de prestação de serviços e não a de “depositário fiel” (quando, por exemplo, as mercadorias estiverem em trânsito, ainda que eventualmente elas permaneçam em seu estabelecimento).
[2] Com as alterações introduzidas pela Lei Delegada 3, de 26 de setembro de 1962.
[3] “RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE COBRANÇA – DEPÓSITO EM ARMAZÉNS GERAIS – INDENIZAÇÃO – QUEBRA PARCIAL DA MERCADORIA DEPOSITADA – PRESCRIÇÃO – MOMENTO DA ARGUIÇÃO – DECRETO 1102/1903.
1. A teor do art. 162 do Código Civil/1916, que hoje encontra correspondência no art. 193 do Código Civil vigente, a prejudicial de prescrição pode ser suscitada em qualquer grau de jurisdição, pela parte a que aproveita. Assim, cuidando-se de prescrição extintiva, arguida ainda em grau de jurisdição ordinária, irrelevante o fato da questão ter sido trazida apenas em sede de apelação, mesmo que não deduzida na fase própria de defesa.
2. Inegável a aplicação do disposto no art. 11 do Decreto nº 1.102/1903 quando o pedido é de indenização em pecúnia ou restituição dos produtos estocados em armazém geral, em razão da responsabilidade deste pelos bens recebidos em depósito que desapareceram ou vieram a perecer. Conquanto seja demasiado exíguo o prazo prescricional de três meses, esta é a vontade do legislador e deve-se aplicar a regra albergada na legislação específica.
3. O Código Civil de 1916, por seu artigo 1807, revogou todas as anteriores normas de direito civil incompatíveis com o Diploma ou que por ele passaram a ser inteiramente reguladas. Deste modo, considerando que o texto de 1916 tratou apenas de modo geral do contrato de depósito, não há se falar em revogação do Decreto nº 1.102/1903 que traz as regras específicas a respeito das empresas de armazéns gerais.
4. Tomando-se em conta que a presente ação traduz pretensão de restituição de mercadoria ou ressarcimento em pecúnia em virtude de perda de produtos estocados em armazém geral, valendo-se do princípio da especialidade, é de se aplicar a prescrição trimestral estabelecida no art. 11, do decreto 1.102/1903. Assim, proposta a ação somente em 1997, forçoso o reconhecimento de que, in casu, operou-se a prescrição, sendo de rigor a extinção da ação nos moldes do art. 269, IV, do CPC.
5. Recurso especial do réu conhecido e provido.” (REsp 767.246/RJ, julg. 19/10/2006).
[4] “RECURSO ESPECIAL. DEPÓSITO EM ARMAZÉM GERAL DE GRÃOS. PREQUESTIONAMENTO. IMPRESCINDIBILIDADE. VIOLAÇÃO AO ART. 515 DO CPC/1973. INEXISTÊNCIA. CONTRATO DE ARMAZENAGEM FIRMADO ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N. 9.973/2000. PRETENSÃO DE DIREITO MATERIAL. INCIDÊNCIA APENAS DAS REGRAS DO DECRETO 1102/1903. INVOCAÇÃO DE FORÇA MAIOR. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE CIVIL. PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO. IMPOSSIBILIDADE.
1. Não procede a tese acerca de violação art. 515 do CPC/1973, pois a Corte local enfrentou a tese recursal, ao assentar que o art. 642 do CC dispõe que o depositário, para não responder pelos casos de força maior, terá de prová-los, e não houve nem mesmo comprovação de que as sacas atingidas pela intempérie são as mesmas da parte autora (qualidade e quantidade).
2. No contrato de armazenagem (depósito de mercadorias em armazém geral), o depositário emite um “recibo”, ou títulos de sua emissão exclusiva, quais sejam, conhecimento de depósito e respectivo warrant, representativos, de um lado, das mercadorias depositadas e, de outro lado, das obrigações assumidas, em razão do contrato de depósito.
3. No caso, o contrato de depósito foi firmado em 26 de abril de 1995, a avença deve ser resolvida apenas à luz do Decreto 1102 de 1903, por isso, não tem aplicação ao caso a Lei n. 9.973/2000, que trata do sistema de armazenagem de produtos agropecuários, estabelecendo no art. 6º, § 6º, que fica obrigado o depositário a celebrar contrato de seguro com a finalidade de garantir, a favor do depositante, os produtos armazenados contra incêndio, inundação e quaisquer intempéries que os destruam ou deteriorem.
4. A força maior é causa excludente de responsabilidade civil, que tem por característica marcante sua inevitabilidade, constituindo evento caracterizado por acontecimentos naturais, como inundação, raio, terremoto, ciclone, maremoto. Com efeito, em vista da própria natureza do contrato de depósito em armazém geral, simples chuva ou vendaval – desde que não tenha o vulto semelhante a de um ciclone de magnitude –, não são hábeis para se cogitar em eximir a armazenadora de sua obrigação de restituir, em adequado estado de conservação, os bens fungíveis depositados.
5. Por um lado, como o contrato de depósito contemplou o pagamento de sobretaxa para a cobertura do caso fortuito, o art. 37, parágrafo único, do Decreto n. 1.102 de 1903 dispõe que são nulas as convenções, ou cláusulas que diminuam ou restrinjam as obrigações e responsabilidades que, por esta lei, são impostas às empresas de armazéns gerais e as que figurarem nos títulos que elas emitirem. Por outro lado, o art. 393 do CC/2002 – correspondente ao art. 1.058 do CC/1916 – estabelece que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, apenas se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
6. No tocante à prisão civil do fiel depositário, estabelece o art. 7º, n. 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.
7. Recurso especial parcialmente provido.” (REsp 1.217.701/TO, julg. 07/06/2016).
[5] “A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito. (Revogada)”.
[6] “Súmula Vinculante 25 – É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.”
[7] Artigo 645 – “O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo.”
[8] Artigo 1.280 – “O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo (arts. 1.256 a 1.264).”
[9] A doutrina, ao analisar o que abaixo denominamos de “Depósito Misturado”, também entende não se tratar de depósito irregular: “(...) Se as mercadorias, pertencendo a donos diversos, forem da mesma natureza e qualidade, poderão ser guardadas misturadas, devendo, entretanto, os armazéns dispor de lugares próprios para esse depósito e estar aparelhados para o bom desempenho do serviço. Não se trata, no caso, de depósito irregular, pois a propriedade das mercadorias não passa para os armazéns; apenas tratando-se de coisas fungíveis, não fica o depositário obrigado a devolver as mesmas que lhe foram entregues, mas outras da mesma qualidade, respondendo, ainda, pelas perdas e avarias que se verificarem, mesmo que resultantes de força maior (Dec. Nº 1.102, de 1903, art. 12§1º).” (Martins, Fran, “Contratos e obrigações comerciais, ed. rev e aum. Rio de Janeiro, Forense, 2010, pág. 358).
[10] Nesse aspecto, cita-se trecho extraído do REsp 523.884/GO, julg. 14/09/2010:
“(...) Destarte, a propriedade da coisa permanece com o depositante, como afirma Fran Martins (ob. cit. ps. 387/388): (...)”.
Destaca-se também trecho do REsp 1.217.701/TO, que faz menção à exposição de motivos do Decreto 1102, subscrita por J. X. Carvalho de Mendonça, em que se verifica a intenção originária de a propriedade das mercadorias depositadas não passarem para os armazéns gerais:
“(...) Na exposição de motivos do Decreto 1.102/1903, subscrita por J. X. Carvalho de Mendonça, assim pontua o renomado tratadista:
O projeto ocupa-se também da guarda das mercadorias in genere, isto é, mercadorias da mesma natureza e qualidade, pertencentes a diferentes depositantes e que são misturadas, perdendo a sua individualidade. Nos armazéns gerais da Escócia ensaiou-se com bom resultado esta prática no comércio do ferro, e logo depois a Inglaterra e a Holanda, a adotaram para os produtos coloniais (café, chá, açúcar bruto, peles curtidas, guano e metais). Estas mercadorias armazenadas a granel nas docas são vendidas em lotes e sobre elas emitidos warrants. A França adota-a no depósito de óleos e farinhas; a América do Norte para os cereais. Para mercadorias da mesma qualidade, esta prática economiza espaço e trabalho na sua guarda e nos transbordos dos navios para os armazéns e vice-versa. O depósito irregular feito nos armazéns gerais tem um caráter excepcional. A propriedade da mercadoria permanece pró-indiviso com os depositantes. (Vivante, Tratatto di Diritto Commerciali – vol III, nº 1.287 – Navarrini, II Magazine generalli, nº 48). Deve-se atender principalmente à intenção dos contratantes: os depositantes permitem ao depositário restituir-lhe outra tanta quantidade de mercadoria da mesma qualidade, mas não o autorizam a se apropriar dela. (...).”
[11] “Art. 11º – As empresas de armazéns gerais, além das responsabilidades especialmente estabelecidas nesta lei, respondem:
(...)
§ 1º – A indenização devida pelos armazéns gerais nos casos referidos neste artigo, será correspondente ao preço da mercadoria e em bom estado no lugar e no tempo em que devia ser entregue.
O direito à indenização prescreve em três meses, contados do dia em que a mercadoria foi ou devia ser entregue. (...)”
[12] “AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. DESERÇÃO. FALHA NA DIGITALIZAÇÃO. ERRO IMPUTADO AO PROCESSO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PRESCRIÇÃO. DECRETO 1102/1903. SÚMULA 83 DO STJ. APLICABILIDADE DO CDC. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356 DO STF. CERCEAMENTO DE DEFESA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. MATÉRIA PROBATÓRIA. SÚMULA 7 DO STJ. SUB-ROGAÇÃO DA SEGURADORA. DIREITO DE REGRESSO. SÚMULAS 188 DO STF e 7 E 83 DO STJ.
1. O prazo prescricional trimestral previsto no Decreto 1.102/1903 para as pretensões indenizatórias apenas se aplica aos armazéns gerais em função do princípio da especialidade, não se estendendo ao terminal portuário.
2. Aplicam-se os óbices previstos nas Súmulas 282 e 356 do STF quando as questões suscitadas no recurso especial não tenham sido debatidas no acórdão recorrido nem, a respeito, tenham sido opostos embargos declaratórios.
3. A verificação da suficiência das provas produzidas nos autos a fim de caracterizar cerceamento de defesa ante o julgamento antecipado da lide demanda a revisão do conjunto probatório dos autos. Incidência da Súmula 7 do STJ.
4. A seguradora tem o direito de ajuizar ação regressiva contra o causador do dano, em relação ao montante que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro. Incidência da Súmula 188 do STF.
5. É inviável rever o entendimento da Corte origem acerca da presença de elementos suficientes para caracterizar o direito de regresso e a sub-rogação da seguradora, visto reclamar a incursão no acervo fático-probatório dos autos.
6. Agravo regimental desprovido.” (AgRg no REsp nº 1.378.371/SP, julg 15/03/2016)
No mesmo aspecto: AgRg no Agravo em REsp 121.152/SP, julg. 15/12/2015, REsp 302.737/SP, julg. 04/12/2001 e REsp 767.246/RJ, julg. 19/10/2006.
[13] No mesmo sentido: AgRg no REsp n. 1.169.418/RJ, DJe de 14.2.2014, e REsp n. 982.492/SP, DJe de 17/10/2011.
[14] Tanto assim o é que o Decreto 1102 expressamente menciona ser o depositante quem designará o valor do seguro contra riscos de incêndio.
[15] “Art. 1º Fica o Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda autorizado a ampliar, mediante portaria, o prazo de depósito inicial e o dos seus consequentes títulos, bem como a dispensar, para a depositária, a obrigatoriedade do seguro contra riscos de incêndio, a que se referem os arts. 10 e 16 do Decreto nº 1.102, de 21 de novembro de 1903, quando se tratar de mercadorias adquiridas no país, em virtude de convênios internacionais e depositadas em Armazens Gerais em nome do Govêrno do país comprador, de seus agentes ou mandatários oficiais de compras e uma vez que a cargo dêstes estejam os riscos referidos.” (SIC)
[16] Frisamos, contudo, que o armazém geral deveria contratar o seguro obrigatório de incêndio em relação a seus bens imóveis.
[17] Nessa situação, caso o seguro sobre tais bens tenha sido feito não pela depositante pessoa jurídica, mas sim pelo armazém geral, entendemos possível sustentar que o seguro contra riscos de incêndio feito pelo armazém geral supriria o seguro obrigatório que o depositante deveria ter contratado. 
 
Fonte: Revista Opinião.Seg nº 14 - Julho de 2017.