Paulo Sogayar Jr. |
I – Introdução
O presente considera a atividade de armazém geral quando ele atuar como “depositário fiel”, ou seja, quando receber mercadorias de clientes para serem armazenadas[1]. Não é objeto desse estudo o sistema de armazenagem de produtos agropecuários, regulado pela Lei 9.973/2000 e Decreto 3.855/2001.
O foco do presente é o Decreto 1.102/1903[2] (“Decreto 1.102”), legislação específica para armazéns gerais, o qual, de acordo com a jurisprudência[3], não foi revogado pelo antigo Código Civil em razão de sua especialidade, havendo vários julgados atuais aplicando preceitos do Decreto 1.102 aos armazéns gerais, especialmente em relação à prescrição. Nada obstante, também há pontos do Decreto 1.102 que a atual jurisprudência não tem aplicado, como, por exemplo, a pena de prisão[4], mormente após a revogação da Súmula 619[5] STF, em 05/06/2009, e da edição da Súmula Vinculante 25[6] STF, em 23/12/2009.
II – Propriedade dos bens depositados
Os depósitos podem ser de bens infungíveis (não podem ser substituídos) ou fungíveis (bens móveis que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade).
No atual Código Civil[7], assim como no anterior[8], há disposição no sentido de normatizar o depósito de coisas fungíveis (também denominado depósito irregular), em que o depositário se obriga a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, pelas regras do mútuo, sendo próprio do mútuo a transferência da propriedade do bem.
Essa regra não se coaduna com a ideia e preceitos do Decreto 1.102, posto que, da análise do aludido Decreto, verifica-se que as mercadorias depositadas jamais passam para a propriedade do armazém geral[9].
Assim, e em razão da especificidade do Decreto 1.102, consideramos que os bens depositados em armazéns gerais continuam sendo de propriedade dos depositantes[10].
III – Duas formas de depósito
O Decreto 1.102 regula duas formas distintas de depósito: (i) bens de vários proprietários, porém da mesma natureza e qualidade, que podem ser guardados misturados (artigo 12 do Decreto 1.102), para o que os armazéns gerais deverão dispor de lugares próprios (denominaremos essa forma de depósito como “Depósito Misturado”) e, (ii) depósito normal de bens (“Depósito Normal”).
IV – Prescrição trimestral
De acordo com o artigo 11[11] do Decreto 1.102, o direito à indenização do depositante em face do armazém geral prescreve em 3 (três) meses.
A jurisprudência[12] atual tem mantido o prazo prescricional trimestral em relação aos armazéns gerais.
Especificamente em relação à ação regressiva de cobrança da seguradora em face ao causador do dano, há entendimento de que o início do prazo prescricional trimestral seria a data em que a seguradora efetua o pagamento da indenização securitária ao segurado, pois é partir desse momento que ela se sub-roga nos direitos daquele, conforme decidido no REsp 1.505.256/SP[13], julg. em 05/05/2016:
“RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE MARÍTIMO. ARMAZENAGEM DE MERCADORIA. AÇÃO REGRESSIVA DE COBRANÇA DE SEGURADO CONTRA SEGURADORA. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. SUB-ROGAÇÃO. LIMITES.
1. Ao efetuar o pagamento da indenização ao segurado em decorrência de danos causados por terceiro, a seguradora sub-roga-se nos direitos daquele, mas nos limites desses direitos, ou seja, a “sub-rogação não transfere à seguradora mais direitos do que aqueles que a segurada detinha no momento do pagamento da indenização” (REsp n. 1.385.142).
Portanto, dentro do prazo prescricional aplicável à relação jurídica originária, a seguradora sub-rogada pode buscar o ressarcimento do que despendeu com a indenização securitária.
2. Recurso especial conhecido e provido.”
V – Seguro de incêndio previsto no Decreto 1.102
O artigo 16 do Decreto 1.102 prevê:
“Art. 16 – As mercadorias, para servirem de base à emissão dos títulos, devem ser seguradas contra riscos de incêndio no valor designado pelo depositante.
Os armazéns gerais poderão ter apólices especiais ou abertas, para este fim.
No caso de sinistro, o armazém geral é competente para receber a indenização devida pelo segurador, e sobre esta exercerão a Fazenda Nacional, a empresa de armazéns gerais e os portadores de conhecimento de depósito e ‘warrants’, os mesmos direitos e privilégios que tenham sobre a mercadoria segurada.
Parágrafo único – As mercadorias de que trata o art. 12 serão seguradas em nome da empresa do armazém geral, a qual fica responsável pela indenização, no caso de sinistro.”
Embora referido artigo permita mais de uma interpretação, considerando que ele se encontra no Capítulo II do Decreto 1.102, que trata da “Emissão, circulação dos títulos emitidos pelas empresas de armazéns gerais”, ou seja, que o foco do Capítulo II do Decreto 1.102, assim como do seu artigo 16 (caput e parágrafo único), não é a contratação de seguro[14], entendemos que não é em qualquer situação que o seguro de incêndio mencionado no artigo 16 deva ser contratado, ao menos pelo armazém geral.
Nos termos do caput do citado artigo 16, notadamente quando menciona “para servirem de base à emissão dos títulos”, entendemos que as mercadorias que devem ser seguradas contra riscos de incêndio são apenas aquelas que sirvam de base para a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”.
Também consideramos que o caput do artigo 16 trata de regra geral, aplicável tanto para Depósitos Normais quanto para Depósitos Misturados, ainda que o artigo 16 do Decreto 1.102 tenha feito menção específica, no parágrafo único, sobre as mercadorias do artigo 12, o que acima denominamos “Depósito Misturado”.
Destarte, concluímos que o parágrafo único do artigo 16 não excepcionou ou afastou a regra geral do caput, qual seja, que as mercadorias depositadas em armazéns gerais (seja via Depósito Normal ou via Depósito Misturado), se servirem de base para a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, devem ser seguradas contra riscos de incêndio pelo armazém geral.
Consequentemente, na hipótese de o depositante não solicitar a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, entendemos, tanto para Depósitos Normais, quanto para Depósitos Misturados que, em relação aos bens depositados, não haveria necessidade de o armazém geral fazer o seguro contra riscos de incêndio, eis que o seguro serviria exatamente para resguardar os mencionados títulos, na hipótese de ocorrência de incêndio.
Neste sentido, cita-se o entendimento do i. Prof. Fran Martins (ob. cit. pág. 361):
“Emitidos unidos, a pedido dos depositantes, o conhecimento de depósito e o ‘warrant’ substituem o recibo de depósito da mercadoria passado pelos armazéns-gerais ao lhes ser esta entregue. Só poderão, entretanto, esses títulos ser emitidos se sobre as mercadorias for feito seguro contra incêndio, sendo o seguro das mercadorias fungíveis feito em nome da empresa de armazéns-gerais, que ficará responsável pela indenização em caso de sinistro (art. 16)”.
Na situação em que o depositante solicitar a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, é condição para a emissão de tais títulos, a contratação por parte do armazém geral de seguro contra riscos de incêndio e, nessa circunstância, o seguro contra incêndio (referente aos bens depositados e sobre os quais tenham sido emitidos os citados títulos) é de caráter obrigatório, inclusive ante a determinação imposta pelo vocábulo “devem”.
Portanto, nada obstante tratar-se de seguro obrigatório, verifica-se que o próprio Decreto 1.102 limitou as situações em que referido seguro deve ser feito, prevendo, expressamente, que as mercadorias que devem ser seguradas são aquelas que servirão de base à emissão dos títulos de “conhecimento de depósito” e do ”warrant”.
VI – Decreto-Lei 6.319/1944
O Decreto-Lei 6.319/1944 (“Decreto-Lei 6.319”) dispôs sobre o “prazo e seguro contra riscos de incêndio de mercadorias depositadas em Armazéns Gerais”.
É possível se argumentar que o Decreto-Lei 6.319 também teria tratado da matéria, impondo, de um modo geral, a obrigatoriedade do seguro contra riscos de incêndio de mercadorias depositadas em armazéns gerais.
Todavia, consideramos que o citado Decreto-Lei não criou uma obrigatoriedade geral e ampla de contratação de seguro contra riscos de incêndio de mercadorias depositadas em armazéns gerais.
Com efeito, referido Decreto-lei faz expressa remissão ao artigo 16 do Decreto 1.102, não se tratando de nova hipótese de contratação de seguro contra riscos de incêndio, ainda mais desvinculada da emissão de títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”.
Aliás, o artigo 1º[15] do Decreto-Lei 6.319 é claro em mencionar tais títulos (“seus consequentes títulos”) e também o artigo 16 do Decreto 1.102.
O Decreto-Lei 6.319 apenas tratou de situação específica, a ser disciplinada por meio de regular portaria, no tocante a mercadorias adquiridas no Brasil, em virtude de convênios internacionais e que sejam depositadas nos armazéns gerais em nome do Governo do país comprador (ou de seus agentes ou mandatários oficiais), possibilitando, nessa situação e de forma excepcional, que o seguro previsto no artigo 16 do Decreto 1.102 não seja contratado, desde que os riscos de incêndio estejam a cargo do Governo comprador.
Assim, consideramos que permanecem válidas as limitações do Decreto 1.102, ou seja, que a obrigatoriedade na contratação de seguro contra riscos de incêndio por armarzém geral decorreria apenas para os casos em que as mercadorias depositadas serviriam de base para a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, desde que não se verifique a situação excepcional de os riscos de incêndio ficarem a cargo do Governo comprador das mercadorias depositadas em armazéns gerais.
VII – Decreto-Lei 73/1966 e Decreto 61.867/1967
O Decreto-Lei 73/1966 (“Decreto-Lei 73”), em seu artigo 20, e o Decreto 61.867/67 (“Decreto 61.867”), em seu artigo 18, regulam a contratação obrigatória de alguns tipos de seguro, dentre eles, a contratação de seguro contra incêndio, conforme, respectivamente:
“Art. 20 – Sem prejuízo do disposto em leis especiais, são obrigatórios os seguros de:
h) incêndio e transporte de bens pertencentes a pessoas jurídicas, situados no País ou nele transportados;”
“Art. 18 – As pessoas jurídicas, de direito público ou privado, são obrigadas a segurar, contra os riscos de incêndio, seus bens móveis e imóveis, situados no País desde que, localizados em um mesmo terreno ou terrenos contíguos, tenha, isoladamente ou em conjunto, valor igual ou superior a vinte mil cruzeiros novos.”
De acordo com os artigos acima, desde que preenchidos os requisitos legais retro mencionados, entendemos que o seguro de incêndio deve ser feito pela pessoa jurídica que seja a “proprietária” dos citados bens.
De acordo com o artigo 112 do Decreto-Lei 73/66 e do artigo 76 da Resolução CNSP 243/11, as pessoas que deixarem de contratar seguros legalmente obrigatórios, sem prejuízo de outras sanções legais, poderão ficar sujeitas à penalidade de multa, correspondente ao dobro do valor do prêmio, quando este for definido na legislação aplicável e, nos demais casos, o que for maior entre 10% (dez por cento) da importância segurável ou R$ 1.000,00 (mil reais).
VIII – Decreto 1102 x Decreto-Lei 73 e Decreto 61.867
Como acima exposto, a legislação não é clara e permite interpretações diversas.
De qualquer forma, na hipótese de o depositante de bens em armazém geral não solicitar a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, entendemos, tanto para Depósitos Normais, quanto para Depósitos Misturados, que o armazém geral não estaria obrigado a fazer o seguro obrigatório contra riscos de incêndio em relação a tais bens depositados (sobre os quais não foram emitidos os citados títulos)[16].
Nessa situação, o seguro obrigatório contra riscos de incêndio sobre tais bens depositados, com base no Decreto-Lei 73/66 e no Decreto 61.867, deveria ser feito pela depositante pessoa jurídica, proprietária dos bens depositados no armazém geral[17].
Por outro lado, na hipótese de o depositante de bens em armazém geral solicitar a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”, tanto para Depósitos Normais, quanto para Depósitos Misturados, que o armazém geral estaria obrigado a fazer o seguro obrigatório contra riscos de incêndio em relação a tais bens depositados, no valor a ser informado pelo depositante.
Ocorre que, nessa situação, e considerando que o depositante (pessoa jurídica) continua sendo o proprietário dos bens depositados no armazém geral, haveria também a obrigação de o depositante contratar o seguro obrigatório contra riscos de incêndio com base no Decreto-Lei 73/66 e Decreto 61.867. Não faz sentido, todavia, se exigir a contratação do seguro contra incêndio por parte do armazém geral e também, em duplicidade, por parte do depositante, dono das mercadorias. O seguro contra incêndio contratado pelo armazém geral deveria ser suficiente para liberar o depositante de contratar novo seguro contra incêndio. Nessa situação, sugerimos consultar o órgão regulador sobre ser suficiente apenas o seguro contratado pelo armazém geral, liberando-se o depositante de contratar o mesmo seguro, ainda que as mercadorias depositadas sejam de sua propriedade.
IX – Conclusão
O seguro contra incêndio de mercadorias depositadas em armazéns gerais é obrigatório para o depositante (quando ele não solicitar a emissão dos títulos denominados “conhecimento de depósito” e “warrant”) ou para o armazém geral (quando o depositante solicitar a emissão de tais títulos). Nessa última hipótese, como a propriedade dos bens depositados ainda é dos depositantes, eles também deveriam fazer o seguro obrigatório contra incêndio, por força do Decreto-Lei 73/66 e do Decreto 61.867. Ocorre que não faz sentido também se obrigar o depositante a efetuar o mesmo seguro contratado pelo armazém geral, devendo o seguro contra incêndio feito pelo armazém geral ser suficiente para liberar o depositante dessa contratação, tendo sido sugerido, nessa última hipótese, para maior resguardo do depositante, a formulação de consulta ao órgão regulador.