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Dever de informação pré-contratual do tomador do seguro à luz da Lei do Contrato de Seguro – Parte 2

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Por Thiago Junqueira*

thiago 27012025

Em continuação à primeira parte,[1] esta coluna analisa aspectos adicionais relacionados à disciplina da declaração inicial do risco prevista na Lei do Contrato de Seguro (Lei nº 15.040/2024 – LCS),especialmente os dispostos nos arts. 32, 45, 118, § 4º e 119.

IV. A extensão do dever de informação: o que se sabe e o que se deveria saber

Tradicionalmente, discute-se se o dever de informação se limita ao que o candidato a tomador do seguro (“segurado” ou “proponente”, para fins deste artigo) sabe ou se também alcança aquilo que razoavelmente deveria saber.

Na versão original do Projeto de Lei nº 29/2017 (“PL”), havia evidente contradição: o art. 47 (atual art. 44 da LCS) estabelecia que o “proponente” deveria fornecer informações necessárias segundo o questionamento da seguradora, enquanto o art. 48 (equivalente ao art. 45 da LCS) impunha às partes o dever de declarar “tudo que souberem de relevante, bem como aquilo que deveriam saber”, sem ressalva ao limite do questionário.[2]

À época, observou-se:

Em primeira instância, releva destacar que o uso do termo ‘proponente’ neste artigo parece inadequado, já que o artigo 44 do PL prevê que a ‘proposta de seguro pode ser efetuada pelo segurado, pelo estipulante ou pela seguradora’ e, em sendo a seguradora a proponente, ou seja, quem efetua a proposta, torna-se complexo entender como ela forneceria as informações para aceitação e cálculo do prêmio de acordo com o questionamento feito por ela mesma. (...) É nítida a falta de coerência entre o artigo 48 e o artigo 47 do PL, visto que o primeiro limita o dever de resposta ao questionário apresentado pelo segurador, enquanto o segundo estabelece a necessidade de declaração pelas partes – especialmente, segurado e seguradora – de tudo que souber de relevante, bem como aquilo que deveria saber, sem ressalvar a mera resposta às perguntas. A interpretação conjunta desses dois dispositivos levanta sérias dúvidas. Além disso, não são abordados aspectos relevantes sobre a declaração inicial do risco, como o destino do prêmio caso haja a perda da garantia e a necessidade (ou não) de comprovação de nexo de causalidade entre o descumprimento do dever de informação e a ocorrência do sinistro, para as consequências previstas no artigo 47 do PL.[3]

Considerável parte das críticas anteriormente apontadas foram acolhidas na versão final da LCS. Em substituição ao termo “proponente” (art. 47 do PL), o art. 44 da LCS passou a empregar a expressão “potencial segurado ou estipulante”. No que se refere ao inadimplemento doloso, acrescentou-se ao § 1º do art. 44 da LCS disposição específica sobre o destino do prêmio em caso de perda da garantia, nos seguintes termos: “O descumprimento doloso do dever de informar previsto no caput deste artigo importará em perda da garantia, sem prejuízo da dívida de prêmio e da obrigação de ressarcir as despesas efetuadas pela seguradora”. E, quanto à contradição anteriormente existente (leitura conjunta dos arts. 47 e 48 do PL), o art. 45 da LCS manteve, de forma expressa, a exigência de que o tomador do seguro declare não apenas o que souber, mas também o que deveria saber, conforme “as regras ordinárias de conhecimento”, esclarecendo, contudo, que o dever de informação se limita ao conteúdo do questionário formulado pelo segurador.[4]

Nesse sentido, a LCS acertadamente não restringiu o dever de informação ao que o tomador efetivamente saiba no momento da contratação, uma vez que a ignorância indesculpável, aferida segundo as regras ordinárias de conhecimento, não pode servir de escudo ao contratante faltoso.[5]

V. A (des)necessidade de nexo de causal entre a omissão/inexatidão e o sinistro

Os institutos da declaração inicial do risco e do agravamento do risco (e seu correlato dever de informar) possuem características próprias, embora, em certos momentos, se entrelacem. No agravamento do risco, o art. 16 da LCS exige expressamente a demonstração de nexo causal entre o agravamento e o sinistro para que seja possível a recusa da indenização em virtude da perda da garantia. Nos seguros de pessoas, o art. 119 da LCS também condiciona a “exclusão” (sic) de cobertura à comprovação de que o estado patológico preexistente ao início da relação contratual tenha sido a causa exclusiva ou principal do sinistro.

Na disciplina geral da declaração inicial do risco, porém, a interpretação do art. 44 da LCS conduz à conclusão de que a perda da garantia, em caso de descumprimento doloso do dever de informação, independe da existência de nexo causal entre a informação omitida ou repassada de forma inexata e o evento danoso. E nos casos de inadimplemento culposo, a sanção aplicável será a redução proporcional da garantia, ou a extinção do contrato prevista no § 3º do art. 44, também independentemente de nexo causal.

O Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), em manifestação pública em defesa do projeto que auxiliou a elaborar e que resultou na LCS, já sustentava: “Por fim, as sanções previstas nos parágrafos do art. 47 são exaurientes: não há qualquer lacuna. Sobrevindo o sinistro, o PLC 29/17 não condiciona a perda de garantia ao nexo causal com o sinistro, tal como preveem, v.g., o direito alemão e o português no caso de omissões culposas”.[6]   

Considerada isoladamente, a adoção desse aspecto poderia ser percebida como rigorosa. Todavia, uma análise do modelo informacional consagrado como um todo afasta essa impressão. Especialmente no caso de inadimplemento doloso, impõe-se a aplicação estrita da disciplina legal. Como já mencionado na primeira parte desta coluna, o instituto em questão possui natureza sancionatória, voltada à repressão de condutas contrárias à lealdade contratual e à boa-fé objetiva. Nessa hipótese, a consequência negativa a ser imposta ao segurado independe da existência de nexo causal entre a omissão ou inexatidão e a ocorrência do sinistro.

VI. Especificidades da disciplina aplicável ao seguro de vida e de integridade física

A LCS conferiu tratamento específico à disciplina do dever de informação nos seguros de vida e de integridade física. O art. 118, § 4º, estabelece que, convencionado prazo de carência, a seguradora não poderá recusar o pagamento do capital segurado sob alegação de preexistência de doença. O art. 119 reforça esse regime, permitindo, em princípio, a exclusão da cobertura apenas se (i) não houver carência e (ii) o segurado, questionado claramente, tiver omitido voluntariamente a informação sobre a condição preexistente que tenha relação causal com o sinistro.

Essa solução legal revela uma intensa preocupação com a proteção do consumidor, mas pode ensejar situações de tutela questionável. Por exemplo, ainda que o segurado tenha dolosamente omitido a existência de grave doença preexistente – como um câncer terminal –, a estipulação de um prazo de carência – imagine-se, de sessenta dias – impediria, em tese, a seguradora de recusar o pagamento do capital segurado após o término desse período, mesmo que a causa do sinistro, ocorrido no sexagésimo primeiro dia, tenha sido justamente a doença omitida.

Essa limitação potencializa riscos de seleção adversa e tensiona princípios fundamentais do direito obrigacional, como a boa-fé objetiva e a vedação ao comportamento contraditório.

Com efeito, haverá casos em que a aplicação literal dessa disciplina poderá conduzir a resultados incompatíveis com princípios estruturantes do direito contratual. Em situações excepcionais, nas quais a omissão ou inexatidão dolosa de condição preexistente tenha inviabilizado a adequada avaliação do risco pela seguradora, a preservação da boa-fé objetiva e do equilíbrio do contrato de seguro exigirá a relativização da regra.

Na prática, é provável que a doutrina e a jurisprudência venham a reconhecer válvulas de escape, como a possibilidade de invocação do vício de consentimento por dolo omissivo, mesmo nos casos em que tenha sido fixado prazo de carência contratual. Essa interpretação foi defendida pelo próprio IBDS em manifestação destinada a contrapor críticas – curiosamente, nessa matéria, em grande medida acolhidas na versão final da lei.[7]

Não se cogita, nesses casos, afastar a proteção conferida pelo legislador, mas interpretá-la considerando todo o ordenamento jurídico, de modo a impedir que o segurado se beneficie de sua própria torpeza e a assegurar que o contrato continue a cumprir sua função econômica e social.

VII. Seguro coletivo e preenchimento do questionário de avaliação do risco pelo segurado

Nos seguros coletivos, a LCS também promoveu importante alteração na disciplina da declaração inicial do risco. Nessa modalidade de contratação, o estipulante representa os segurados tanto na formação quanto na execução do contrato, sendo o contrato principal celebrado diretamente entre a seguradora e o estipulante, enquanto aos segurados cabe apenas a adesão às suas condições.

Com base nessa estrutura, o parágrafo único do art. 32 da LCS passou a exigir que o documento de adesão – em especial o questionário de avaliação do risco – seja preenchido pessoalmente pelos segurados ou beneficiários, como condição para que possam ser oponíveis as exceções e defesas da seguradora fundadas nas declarações prestadas para a formação do contrato.[8] No seguro de vida coletivo, por exemplo, o preenchimento da declaração pessoal de saúde (DPS) por terceiros – inclusive por corretores de seguros que atuem como mandatários dos segurados – não produzirá, em tese, efeitos vinculantes contra estes.

Essa previsão legal destoa da regulação atualmente vigente, já que a normativa da SUSEP admite que o representante do segurado ou o corretor possa preencher o requerimento de adesão à apólice coletiva, além do próprio proponente.[9]

Na prática, a exigência de preenchimento pessoal tende a representar um entrave burocrático relevante, sobretudo em contratos coletivos que envolvam um número elevado de segurados. Ainda assim, tudo indica que seguradoras e estipulantes precisarão adaptar seus procedimentos para atender ao novo comando legal.

VIII. Considerações finais

O instituto da declaração inicial do risco vinha, nos últimos anos, começando a perder prestígio nas relações securitárias massificadas, em razão do avanço tecnológico, do uso da telemetria em algumas modalidades securitárias e da maior capacidade de as seguradoras acessarem e tratarem dados pessoais de forma automatizada, independentemente do provimento direto pelos (candidatos a) segurados.[10]

Com a entrada em vigor da LCS, contudo, é provável que a fase pré-contratual reassuma maior centralidade, exigindo processos mais rigorosos de subscrição, especialmente nos seguros de grandes riscos.[11]

A nova disciplina exigirá trâmites mais estruturados, o que implicará adaptações técnicas e culturais por parte dos operadores do mercado, incluindo a reformulação dos questionários, a revisão das práticas de gestão dos riscos contratuais e a reorganização dos fluxos de informação.

A efetividade da reforma[12] dependerá, em grande medida, da interpretação que vier a ser conferida aos seus dispositivos.

Caberá à doutrina e à jurisprudência dissipar as zonas de incerteza ainda existentes e assegurar que o novo regime contribua para o fortalecimento da segurança jurídica e da confiança nas relações de seguro. Para isso, será essencial uma interpretação que concilie a proteção do consumidor individualmente considerado com a preservação da mutualidade e da boa-fé objetiva.


*Thiago Junqueira é Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Sócio-fundador do escritório Junqueira & Gelbecke Advogados, é Professor de Direito do Seguro e Resseguro na FGV e Professor convidado da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros. Atualmente, exerce as funções de Diretor da AIDA Brasil e de Diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil. Contato: thiago@junqueiragelbecke.adv.br

[1] A primeira parte deste artigo dedicou-se à análise do art. 44 da LCS, principal fonte normativa sobre a matéria, estruturada a partir do seguinte sumário: I. Introdução; II. A nova disciplina da declaração inicial do risco no art. 44 da LCS; II.I. Da declaração espontânea ao questionário: a transição para o modelo legal responsivo; II.II. Dolo, culpa e proporcionalidade: reestruturação dos graus de censurabilidade e das sanções para o inadimplemento da declaração inicial do risco; II.III. Extinção do contrato por risco não revelado pelo tomador e usualmente não subscrito pela seguradora; e III. Considerações finais – remissão para a segunda parte do artigo. (JUNQUEIRA, Thiago. Dever de informação pré-contratual do tomador do seguro à luz da Lei do Contrato de Seguro – Parte 1. Disponível em: https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Artigos-e-Noticias/Artigos-e-Noticias/Dever-de-informacao-pre-contratual-do-tomador-do-seguro-a-luz-da-Lei-do-Contrato-de-Seguro-%E2%80%93-Parte-1.html). Acesso em: 28.04.2025.

[2] Confira-se: art. 47 do PL: “O proponente é obrigado a fornecer as informações necessárias para a aceitação do contrato e fixação da taxa para cálculo do valor do prêmio, de acordo com o questionamento que lhe submeta a seguradora”. Art. 48 do PL: “As partes e os terceiros intervenientes no contrato devem informar tudo que souberem de relevante, bem como aquilo que deveriam saber, a respeito do interesse e do risco a serem garantidos, de acordo com as regras ordinárias de conhecimento”. (Destacou-se).

[3] JUNQUEIRA, Thiago. Aprovação do PL de Seguros n° 29/2017 seria um erro (parte 2). https://www.conjur.com.br/2023-jun-01/seguros-contemporaneos-aprovacao-pl-seguros-292017-seria-erro-parte2/. Acesso em: 28.04.2025.

[4] Art. 45 da LCS. “As partes e os terceiros intervenientes no contrato, ao responderem ao questionário, devem informar tudo de relevante que souberem ou que deveriam saber a respeito do interesse e do risco a serem garantidos, de acordo com as regras ordinárias de conhecimento”. (Destacou-se).

[5] A aplicação dessa regra varia conforme o perfil do tomador do seguro, sendo exigido um grau ainda mais elevado de diligência nos seguros empresariais, especialmente nos contratos de grandes riscos.

[6] IBDS – Instituto Brasileiro de Direito do Seguro. Manifestação sobre o PLC 29/17. São Paulo, 15 jun. 2023. p. 19. Disponível em: https://www.ibds.com.br/wp-content/uploads/2023/06/2023.06.15-manifestacao-sobre-o-PLC-29-2017.pdf. Acesso em: 26.04.2025.

[7] “Criticam-se o §4º do art. 116 e o art. 117, os quais vedam a recusa de pagamento do capital segurado por omissão voluntária de informações sobre doenças preexistentes, quando se estipular um prazo de carência para essas doenças. Entendem os críticos que, assim dispondo, se deixaria de punir o comportamento desleal do segurado e promover-se-ia a seleção adversa. A questão é de política legislativa. Uma das maiores fontes de conflito em seguros de vida é a recusa de pagamento fundada na alegação de reticência ou omissão a respeito de doença preexistente. A casuística aporta situações em que realmente há omissão voluntária, mas muitas vezes aponta para prováveis omissões culposas ou simplesmente por ignorância do segurado a respeito de suas moléstias, isso sem contar os casos em que os segurados têm dificuldade de compreender o alcance dos questionários ou mesmo desconheçam seu próprio estado de saúde como o juízo prudente mandaria conhecerem. O PLC 29/2017 estimula a eliminação dessa fonte de conflitos e estimula as seguradoras a bem avaliarem seu conhecimento técnico acumulado para formularem prazos de carência ao invés de conflitarem, após a morte daquele a quem a falta informativa é atribuída. O dispositivo, é importante ressaltar, não exclui a incidência do regime civil dos vícios de consentimento. Dessa forma, em situações-limite, o contrato de seguro poderia, em tese, ser anulado por dolo omissivo informativo do segurado para com a seguradora, desde que comprovados seus pressupostos”. (IBDS – Instituto Brasileiro de Direito do Seguro. Manifestação sobre o PLC 29/17. São Paulo, 15 jun. 2023. p. 29. Disponível em: https://www.ibds.com.br/wp-content/uploads/2023/06/2023.06.15-manifestacao-sobre-o-PLC-29-2017.pdf. Acesso em: 26.04.2025). (Destacou-se).

[8] Nesse contexto, o parágrafo único do art. 32 da LCS estabelece: “Para que possam valer as exceções e as defesas da seguradora em razão das declarações prestadas para a formação do contrato, o documento de adesão ao seguro deverá ter seu conteúdo preenchido pessoalmente pelos segurados ou pelos beneficiários”.

[9] Art. 3º da Circular SUSEP nº 642/2021 (que dispõe sobre a aceitação e a vigência do seguro e sobre a emissão e os elementos mínimos dos documentos contratuais): “A celebração, a alteração ou a renovação não automática do contrato de seguro somente poderão ser feitas mediante proposta preenchida e assinada pelo proponente, seu representante legal ou corretor de seguros, exceto quando a contratação se der por meio de bilhete”. Art. 6º da Resolução CNSP nº 434/2021 (que dispõe sobre estipulação de seguros e responsabilidades e obrigações de estipulantes e sociedades seguradoras em contratações de seguros por meio de apólices coletivas): “A contratação de seguros por meio de apólice coletiva deve ser realizada mediante proposta de contratação assinada pelo estipulante e, se houver, pelo sub-estipulante. Parágrafo único. A adesão à apólice coletiva deverá ser realizada mediante preenchimento e assinatura de proposta de adesão pelo proponente, seu representante legal ou corretor de seguros”.

[10] Sobre o tema e alguns dos desafios relativos à transformação da “era da ciência atuarial” para a “era da ciência dos dados” nos seguros privados, consulte-se JUNQUEIRA, Thiago. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros. São Paulo: Thomson Reuters, 2020.

[11] Isso se explica, em especial, pelo novo modelo do agravamento do risco vinculado ao questionário aplicado pelo segurador em sede pré-contratual, conforme previsto no art. 13, § 1º, da lei.

[12] Além dos dispositivos já comentados, cabe ainda mencionar o art. 43, parágrafo único, e o art. 46, ambos da LCS.

(29.04.2025)