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Da Exclusão Tácita do Risco - O princípio da interpretação restritiva da cobertura

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Por Thiago Leone R. Molena

A particularização do risco pode ocorrer de duas maneiras: (i) por meio da cláusula de exclusão expressa, ou (ii) em razão da interpretação restritiva da cláusula de cobertura fazendo com que um determinado risco não tenha cobertura não por estar excluído, mas por não estar coberto na garantia.

É possível denominar esta segunda forma de “particularização tácita do risco”.

A cobertura do seguro pode ser interpretada restritivamente em virtude do “princípio da mutualidade” e da “pré-especificação do risco”, conforme artigo 757 do Código Civil.

Para Pedro Alvim, da escola clássica erigida a partir do Código Civil de 1916, a interpretação restritiva é uma das regras mais importantes da formação do seguro por que é necessário aplicar estritamente os termos convencionados com relação ao risco coberto para não afetar o equilíbrio entre risco, cobertura e prêmio pago pelo segurado [1].  No seu entendimento, ela é “uma das normas importantes para o contrato de seguro é a que determina a interpretação restritiva de suas cláusulas. É necessário aplicar estritamente os termos convencionais, sobretudo com relação aos riscos cobertos” [2].  Ele exemplifica: “o fato de uma apólice dar cobertura contra incêndio não autoriza, sem violação das condições convencionadas, estendê-la ao aquecimento produzido por fermentação sem produção de chamas. A cobertura de explosão proveniente do próprio recinto segurado não deverá beneficiar a explosão proveniente do vizinho” [3].

Impossível negar que a aplicação da “interpretação restritiva da cobertura” decorre da forte influência exercida pela redação do artigo 1.460 do Código Civil de 1916: “Quando a apólice limitar ou particularizar os riscos do seguro, não responderá por outros o segurador.” Em outras palavras, em não havendo limitação e particularização, a interpretação será restrita aos riscos indicados na cobertura.

A interpretação restritiva da cláusula de cobertura tem amparo nas decisões de Tribunais Estaduais, em especial, de São Paulo, inclusive, com elevação deste método hermenêutico ao patamar de “princípio”, conforme dizeres do Desembargador Roque Antonio Mesquita de Oliveira, da 18ª Câmara de Direito Privado, para quem o segurador não se responsabiliza por risco não descrito na cobertura da apólice em razão do princípio da interpretação restritiva, sendo que os riscos assumidos são aqueles exclusivamente descritos e dentro dos limites fixados não se admitindo extensão ou analogia.[4]

Inúmeros são os precedentes do mesmo Tribunal, que aponta para familiarização e permanência da regra do revogado artigo 1.460 do Código Civil.[5] O Tribunal do Rio Grande do Sul, também, sustenta este posicionamento, porém a partir da vedação da interpretação extensiva da cobertura.[6]

Em apólice de vida, a 25ª Câmara do Tribunal de São Paulo decidiu excluir cobertura para “doença grave” por não ser risco coberto na cláusula de invalidez total ou parcial por “doença terminal”. A questão central é a via interpretativa utilizada para considerar “doença grave” como “doença terminal” para exigibilidade da cobertura do seguro de vida. Neste contexto, o relator Desembargador Hugo Crepaldi parte do mesmo “princípio” de vedação da interpretação extensiva do contrato de seguro para configurar que “doença grave” é o risco coberto e, portanto, está excluído da cobertura de invalidez total ou parcial por “doença terminal”.[7]

O STJ tem entendimento idêntico. No julgamento envolvendo apólice de responsabilidade civil do transportador de carga, o relator Ministro Raul Araújo, da 4ª Turma, fixou como base (i) a validade da cláusula de exclusão e (ii) a interpretação restritiva da cláusula de cobertura.[8]

Um debate mais profundado ocorre entre o “princípio da interpretação restritiva” versus a interpretação favorável ao consumidor (CDC, artigo 47) ou, ainda, ao aderente (CC, artigo 423), que visa reequilibrar o sinalagma do negócio jurídico a partir da proteção à parte hipossuficiente. Assim, o debate se estrutura sobre no binômio (i) interpretação restritiva versus (ii) interpretação ampliativa mais favorável ao segurado.

Em uma tentativa de ajustamento dos princípios e separação de seus efeitos, a 6ª Câmara Cível do Tribunal do Rio Grande do Sul pontuou a diferença entre “simples leitura dos termos da avença” e a “interpretação mais benéfica ao consumidor.” O mérito daquele feito era interpretação da cláusula de cobertura em microsseguro fornecido pela concessionária distribuidora de energia daquele Estado, na qual previa garantia do fornecimento de serviço de reparo de “sistema hidraúlico interno que possa ter como consequência alagamentos.” Na referida apólice, ainda, consta exclusão de cobertura para “(...) reparos de torneiras, reservatórios subterrâneos, aquecedores, caixa d´água, bombas hidráulicas, assim como o desentupimento de banheiro, impermeabilização ou proteção das paredes externas do imóvel”. No embate entre interpretar de forma restritiva a cobertura ou de forma ampliativa para favorecer o consumidor, o relator Desembargador Ney Wiedemann Neto pontou que naquele caso, inobstante a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, não se teria a impetração da cláusula, mas sim de “simples leitura dos termos da evença”. O julgador ponderou que “o sinistro ocorrido foi decorrente de risco não coberto.” e continuou afirmando que “não incide nesse caso a disposição inserida no Código de Defesa do Consumidor a respeito da interpretação mais benéfica ao consumidor, exatamente porque não se trata de interpretação de cláusula, mas de simples leitura dos termos da avença.”.[9]

Diferenciar a interpretação de cláusula de uma simples leitura é, portanto, uma das vias para distinguir a aplicação e interpretação da cobertura de acordo com o julgador do Rio Grande do Sul. A habilidade nesta diferenciação não tem importância no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que aponta a dúvida do exegeta como elemento para aplicação do Código de Defesa do Consumidor. O Desembargador João Cancio pontou que, diante da existência da dúvida quanto à cobertura do seguro, deve ser aplicada a interpretação mais favorável ao consumidor, em obvia indicação de aplicação do artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor. Consta na ementa daquele julgado: “(...) III- A interpretação das respectivas condições do contrato deve ser de forma mais favorável ao consumidor se há dúvida quanto à cobertura para o caso de danos decorrentes de vício construtivo”.[10] Nesta particularidade se insere o pensamento de Pedro Alvim ao induzir a aplicação restritiva do seguro quando houve clareza na redação da apólice: “Se as cláusulas da apólice estão regidas com clareza ao delimitar o risco coberto, não devem ser desvirtuadas sob o pretexto de interpretação para incluir coberturas que não estavam previstas ou foram expressamente excluídas no contrato”.[11]

Outra questão importante nesta análise é o meio de veiculação e comercialização do seguro. Nos produtos de mercado massificado, microsseguro ou de pura e simples adesão, como por exemplo, vida coletivo, acidentes pessoais empregador, ter-se-á, indiscutivelmente, a maior valorização da interpretação ampliativa em favor do segurado consumidor/aderente em caso disfunção na redação da apólice. A razão disso é simples: com a interpretação mais favorável em caso de dúvida ter-se-á reequilíbrio do sinalagma entre apólice mal redigida e o consumidor. Já nas apólices de risco sofisticado e contratação especializada, é de se sustentar que a interpretação a prevalecer é aquela restritiva aos termos da cobertura a partir dos princípios da restrição, vedação da extensão e analogia.

Sobre este tema é impossível deixar de citar a lição do Des. Themístocles Neto Barbosa Ferreira, da 29ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, dá solução a partir da estrutura econômica-social do seguro, que não deixar de ser a sua função social: “Conquanto a interpretação do contrato de seguro deva ser feita de modo a maximizar a tutela da dignidade da pessoa, não menos certo é o fato de que por outro lado, não se pode deixar de levar em conta seu equilíbrio econômico decorrente do cálculo atuarial de ocorrências de sinistro. Recurso Improvido.” in Apelação n. 0012780-16.2011.8.26.0477, j. 04.05.2016; DJESP 11.05.2016.

Portanto, havendo dúvida na cláusula em razão da má redação da cobertura deve ser aplicada a interpretação ampliativa e, portanto, mais favorável ao consumidor ou aderente como forma de reequilibrar o seguro, principalmente, quando a contratação for decorrente do mercado de massa. Em havendo clareza na cobertura, a interpretação deve ser restritiva aos termos claramente redigidos mesmos que isso importante no não favorecimento do consumidor/aderente em detrimento na manutenção da estrutura econômico-financeira do seguro.

É indiscutível a dificuldade de se construir um entendimento uniforme nos Tribunais mesmo se tratando do mesmo seguro, de consumidores, do mesma cláusula. De norte a sul do Brasil, temos diversos entendimentos, diversas aplicações e a regionalismos e a cultura de cada Estado influencia diretamente na interpretação, aplicação e manutenção da norma.

[1] ALVIM, Pedro, O Contrato de Seguro. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1983, p. 175.

[2] Idem, op. cit., p. 175.

[3] Idem, op. cit., p. 175/176.

[4] “RECURSO. Apelação. Insurgência contra a r. Sentença que julgou improcedente a “ação condenatória com pedido de declaração de quitação do contrato”. Inadmissibilidade. Roubo de veículo. Hipótese que não se encontra prevista na cobertura do seguro. Princípio da interpretação restritiva do contrato de seguro. Autora que não se desincumbiu do ônus que lhe cabia. Inteligência do artigo 333, inciso I do Código de Processo Civil. Recurso improvido.” (TJ/SP-18ª Câmara de Direito Privado, Apelação 1000355-93.2014.8.26.0004, Rel. Des. Roque Antonio Mesquita de Oliveira, julg. 06.04.2016, DJESP 26.04.2016 - grifo nosso).

[5] Precedentes que apontam a existência do “princípio da interpretação restritiva do seguro” : a) TJ/SP: APL 0000189-74.2012.8.26.0028; Ac. 9278207; Aparecida; Vigésima Nona Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Carlos Henrique Miguel Trevisan; Julg. 16/03/2016; DJESP 11/05/2016; b) TJ/DF -  Rec 2015.00.2.019022-9; Ac. 917.761; Terceira Turma Cível; Relª Desª Maria de Lourdes Abreu; DJDFTE 12/02/2016; Pág. 146.

[6] “2. O exercício do direito de não renovação do seguro de vida em grupo pela seguradora, na hipótese de ocorrência de desequilíbrio atuarial, com o oferecimento de proposta de adesão a novo produto, não fere o princípio da boa-fé objetiva, mesmo porque o mutualismo e a temporariedade são ínsitos a essa espécie de contrato. Seguro de vida/invalidez. Previsão de cobertura securitária para invalidez por acidente. Caracterização de invalidez por doença. Inexistência de cobertura securitária para o sinistro. Vedação da interpretação extensiva. Sentença reformada para julgar o pedido improcedente. Agravo retido não provido. Apelo provido.” (TJ/RS; AC 0261861-08.2014.8.21.7000; Lajeado; Sexta Câmara Cível; Rel. Des. Ney Wiedemann Neto; Julg. 20/11/2014; DJERS 05/12/2014).

[7] Apelação n. 0003879-34.2011.8.26.0356, j. 13.04.2016; DJESP 29.04.2016: “Cobertura securitária para os eventos morte, invalidez permanente total ou parcial por acidente, doença terminal e indenização adicional por morte acidental. Apesar da gravidade da moléstia que acomete o embargado, não restou demonstrado seu estágio terminal. Doença grave, não coberta pela apólice, que não se confunde com a doença terminal. Ausência de cobertura. Impossibilidade de ampliação da cobertura securitária, principalmente porque os contratos de seguro possuem interpretação restritiva. Indenização não é devida. Sentença mantida por seus próprios fundamentos. Negado provimento.”

[8] “1. Esta Corte Superior já se manifestou sobre a possibilidade de exclusão de cobertura nos casos em que o dano ao bem segurado é decorrente de apropriação indébita ou estelionato, limitando-a às hipóteses de roubo ou furto, consignando que as cláusulas contratuais de cobertura devem ser interpretadas restritivamente.”  in AgRg-AREsp 402.139-SC, j. 11.09.2015.  A ementa do julgado merece anotação: “2. No caso dos autos, a restrição contratual é ainda menor. O contrato de seguro contém cláusulas que prevê a cobertura para sinistro ocorrido com carga decorrente de apropriação indébita ou estelionato, mas exclui tal direito quando, no sinistro, não se perder também o veículo transportador. Tal cláusula está redigida com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão, não sendo, pois, abusiva.”

[9] TJ/RS-6ª Câmara Cível - Apelação 0432851-95.2015.8.21.7000, rel. Des. Ney Wiedemann Neto, j. 28.04.2016.

[10] Apelação Cível n. 1.0702.06.323298-8/001.

[11] ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1983, p. 176.
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(*) Thiago Leone R. Molena é Advogado Securitário. Especialista em Direito Civil e Direito do Consumidor pela Escola Paulista de Direito. Cursando MBA Gestão Jurídica em Seguro e Resseguro na Escola Nacional Superior de Seguros - Funenseg. Consultor e Advogado na TLM.

(30.08.2016)