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Criminalizar enriquecimento ilícito é populismo penal

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Por Rodrigo Falk Fragoso (*)

A criminalização do enriquecimento ilícito é uma das dez medidas que tornariam mais eficaz o combate à corrupção, ao menos na imaginação do grupo de procuradores da Operação Lava Jato. É curioso que a proposta não tenha trazido nenhum estudo sério de direito comparado ou indicação probabilística que pudesse amparar a crença de que, se aprovada, a medida resultaria numa efetiva redução da corrupção no Brasil.

Ao revés. É possível prever que a medida será inócua para diminuir índices de corrupção, tomando-se por base os relatórios da Transparência Internacional, organização não-governamental que tem por objetivo lutar contra essa mazela. México e Argentina, países que criminalizaram o enriquecimento ilícito, continuam a exibir níveis altíssimos de corrupção, muito superiores aos do Chile, Brasil e Uruguai, onde não há este tipo de crime.

Dizem os procuradores federais que a criminalização do enriquecimento ilícito é recomendada por convenções internacionais contra a corrupção. Isto é verdade. Porém há três considerações que parecem ter sido esquecidas: i) as convenções ressalvaram que a tipificação penal somente ocorrerá se a norma não conflitar com o ordenamento jurídico interno; ii) Estados Unidos e Canadá manifestaram violenta oposição e se recusaram a tipificar este crime, por entenderem que violaria o princípio da presunção de inocência; e iii) o Brasil já pune o enriquecimento incompatível de funcionário público, como ilícito administrativo, sancionando-o com severa multa, de até três vezes o valor do patrimônio acrescido.

Na visão dos acusadores, a discrepância no patrimônio do funcionário público é prova indireta da corrupção – o que não tem nenhum valor jurídico -, na medida em que "revelaria" um agir imoral e ilegal de quem está sujeito a regras de escrutínio, transparência e lisura, em razão do ofício. O argumento, todavia, não convence.

Ora, as formas de enriquecimento ilícito (corrupção, peculato, prevaricação, advocacia administrativa, entre outras) já estão todas tipificadas criminalmente. Como custa crer que o MPF esteja propondo crime supérfluo, na realidade o que se pretende é a facilitação probatória; ou, melhor, criar uma alternativa punitiva do tipo "soldado de reserva", para os casos em que não houver prova para condenar pelos crimes contra a administração pública.

Assim, o que se acabaria por incriminar não seria a ilicitude do enriquecimento, mas sim a origem desconhecida, mal explicada ou sua natureza desproporcional. Entretanto é muito distinta a gravidade da conduta do funcionário que apenas não justifica eventual acréscimo patrimonial daquela de quem atenta contra a administração pública. Prender quem não praticou conduta desonesta, desviada da função pública, é admitir pena de suspeita, o que viola o princípio da culpabilidade. É lição antiga: o direito penal só deve intervir para lesões ou ameaça de certos bens jurídicos, se não existir outra forma jurídica de combate menos gravosa igualmente eficaz e, ainda, que não crie mais problemas do que soluciona.

O projeto contém ainda outras falhas: i) suprime a qualificação "significativo" do elemento valor incompatível, o que pode conduzir à injusta punição por irrisórias discrepâncias patrimoniais que não se consiga justificar, contrariando as convenções internacionais, e ii) despreza o nexo de causalidade com a conduta desonesta, o que criaria um crime cuja conduta é menos grave do que a da correlata infração disciplinar, que exige a prova do exercício irregular da função pública.

Além de a eficácia da criminalização não estar minimamente demonstrada, o enriquecimento ilícito, se transformado em crime no Brasil, introduziria entre nós um insidioso tipo de delito para o qual o promotor não precisaria fazer a prova da culpabilidade. O acusado é que ficaria obrigado a provar sua inocência, depois que o órgão acusatório tiver afirmado, valendo-se de simples conta matemática, que os bens utilizados estão em valor superior aos de sua renda declarada.

Se o crime é ineficaz para reduzir a corrupção e se o modelo de redação típica impõe grave sacrifício ao princípio constitucional da presunção de inocência e à garantia convencional contra a auto-incriminação, resta claro que a proposta padece de dois vícios: ineficiência e antidemocracia. Não nos esqueçamos de que foi no AI-5 que se instituiu o confisco de bens de funcionários públicos, por decreto do presidente da República, independentemente de qualquer conduta desonesta.

Novos crimes, antigos problemas. Ao se propor a criminalização do enriquecimento, mascara-se a ineficiência dos órgãos de controle. Cria-se a falsa sensação de que, com os novos instrumentos legais, aí sim haverá redução de criminalidade, quando sabemos que tal redução só poderá ser alcançada com a efetiva implantação dos instrumentos legais atuais, que, paradoxalmente, a Lava Jato demonstra serem plenamente eficazes.

Mais do que a manipulação perversa do imaginário social, a proposta dos procuradores deixa à mostra o trágico populismo penal que vem impulsionando o furor legislativo atual, sempre e toda vez que o medo assume o lugar da razão. Não nos enganemos: os que creem fervorosamente nas lendas da tutela penal são os que mais estragos podem causar à política criminal brasileira.

(*) Rodrigo Falk Fragoso é advogado e sócio do escritório Fragoso Advogados.

Fonte: Valor Econômico, em 09.08.2016.