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Cooperativas e seguradoras: distinções jurídicas e a não aplicabilidade dos créditos dos associados à recuperação judicial

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Por Voltaire Marenzi, Advogado e Professor

voltaire 2024Neste ensaio vou procurar analisar as distinções quanto à natureza jurídica entre cooperativas e seguradoras, focando, por outro lado, um tema comum entre as duas entidades, ou seja, a não sujeição dos créditos dos associados e também da própria seguradora aos efeitos da recuperação judicial.

Através de uma ótica legislativa e jurisprudencial, destaca-se a natureza extraconcursal dos créditos oriundos de atos cooperativos e a exclusão das seguradoras do regime da recuperação judicial, conforme determina a legislação brasileira.

Assim procedo em razão da leitura de dois julgamentos prolatados pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, nos recursos especiais sob números 2.091.441 e 2.110.361 este último ainda sem data de publicação.

A fonte foi colhida no Informativo Migalhas, de ontem, 21/05/25.[1]

Segundo relata o sobredito informativo, no julgamento destes dois recursos, ambos da relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, se definiu que créditos decorrentes de contratos firmados entre cooperativas de crédito e seus associados constituem atos cooperativos e, por isso, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial.

Motivado pelo tema vou buscar fazer um paralelo traçando uma dicotomia existente entre estes dois entes no que tange a recuperação judicial, prevista na Lei número 11.101/2005, que objetiva à preservação da empresa, manutenção dos empregos e interesses dos credores. Contudo, como adiantei supra, determinadas entidades, como cooperativas e seguradoras, possuem tratamentos jurídicos específicos que as excluem ou limitam sua participação nesse regime. Este artigo busca elucidar as razões e fundamentos legais para tais exclusões, especialmente no que tange aos créditos dos associados cooperativados.

Com uma dedicatória fraterna à minha pessoa o saudoso jurisconsulto Ovídio A. Baptista da Silva, ensinou:

“A relação básica, institucional, entre sociedade cooperativa e seus sócios assinala, de maneira inconfundível, sua principal característica. Ao contrário das sociedades mercantis, costuma-se dizer que a cooperativa presta serviço ao próprios sócios”.[2]

Deveras. As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídicas próprias, sem fins lucrativos, regidas pela Lei nº 5.764/1971. Os atos cooperativos, definidos no artigo 79 da referida lei, são aqueles praticados entre cooperativas e seus associados para a consecução dos objetivos sociais, não se caracterizando como operações de mercado.[3]

Com a reforma introduzida pela Lei nº 14.112/2020, se alteraram diversas leis correlatas, para atualizar a legislação referente à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária, acrescentando-se o § 13 ao artigo 6º da Lei nº 11.101/2005, estabelecendo que:

“Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica”.

Tal disposição reforça a natureza extraconcursal dos créditos oriundos de atos cooperativos, excluindo-os do regime da recuperação judicial.

Neste norte, a jurisprudência tem consolidado o entendimento de que

os créditos decorrentes de atos cooperativos não se submetem aos efeitos da recuperação judicial.

Já no que concerne as seguradoras são consideradas sociedades empresariais com fins lucrativos, reguladas ainda pelo vetusto Decreto-Lei nº 73/1966, embora previstas com nova roupagem delineada pela Lei do novo Marco Legal dos Seguros, supervisionadas pela Superintendência de Seguros Privados. Diferentemente das cooperativas, as seguradoras operam mediante contratos de seguro com terceiros, caracterizando-se por relações contratuais de consumo.

O artigo 1º da Lei nº 11.101/2005 exclui expressamente as seguradoras do regime da recuperação judicial, dada sua natureza e a necessidade de garantir a solvência e a proteção dos segurados.

A jurisprudência tem reafirmado a exclusão das seguradoras do regime da recuperação judicial. Inclusive no julgamento do recurso especial nº 2.029.240/SP, o STJ decidiu que os prêmios de seguros arrecadados por representantes de seguradoras em recuperação judicial não se submetem aos efeitos da recuperação, por não integrarem o patrimônio da recuperanda.

Através de uma análise legislativa e jurisprudencial se evidencia que os créditos oriundos de atos cooperativos, pela sua natureza societária e não contratual, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, sendo considerados extraconcursais. As seguradoras, por sua vez, são excluídas do regime da recuperação judicial devido à sua natureza empresarial e à necessidade de garantir a solvência e a proteção dos segurados. Assim, tanto cooperativas quanto seguradoras possuem tratamentos jurídicos específicos que as distinguem no contexto da recuperação judicial.[4]

As decisões reforçam a interpretação de que, mesmo quando envolvem operações financeiras, os contratos realizados no âmbito de uma cooperativa com seus cooperados mantêm natureza jurídica própria - distinta das relações bancárias típicas de mercado.

Destarte, empresas em recuperação judicial requereram ao Tribunal da Cidadania que créditos cobrados por cooperativas de crédito fossem incluídos no processo recuperacional - ou seja, submetidos ao juízo universal da recuperação, com suspensão das execuções individuais.

As empresas sustentavam que as operações tinham natureza mercantil, com taxas, prazos e condições comuns ao mercado financeiro, afastando a ideia de que se tratavam de atos cooperativos.

Também questionaram a validade do §13 do art. 6º da lei de recuperação judicial (lei 11.101/05), inserido pela reforma de 2020 (lei 14.112), que exclui expressamente os atos cooperativos dos efeitos da recuperação judicial.

O TJ/SP rejeitou os pedidos e classificou os créditos como extraconcursais, permitindo a continuidade das execuções pelas cooperativas fora do âmbito da recuperação.

Como já adiantado supra o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva manteve a interpretação dada pelos tribunais paulistas.

Em seu voto, destacou que a concessão de crédito pela cooperativa a seus associados integra os objetivos sociais da entidade e está amparada pelo conceito legal de ato cooperativo, definido no art. 79 da lei 5.764/71.

"O ato de concessão de crédito realizado entre a cooperativa de crédito e seu associado está dentro dos objetivos sociais da cooperativa, devendo ser considerado como ato cooperativo e, portanto, não sujeito aos efeitos da recuperação judicial".[5]

Portanto, como acentua, a Lei número 11.101, de 9 fevereiro de 2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária está ali inserto, de modo expresso, de que a este diploma legal não se aplica a instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores.[6]

Logo, embora se trate de institutos com natureza jurídica distintas a excepcionalidade da lei resguarda os interesses dos associados das cooperativas e dos segurados participantes de contratos de seguro.

Essas entidades atuam como intermediárias de recursos alheios e têm uma função sistêmica relevante, o que exige regimes especiais de solvência e intervenção, como a liquidação extrajudicial. Assim o fim colimado é a proteção na confiança pública e a segurança econômica, assegurando que interesses coletivos e sensíveis – como os dos segurados e participantes – sejam tutelados de forma mais rígida do que nos processos comuns de recuperação judicial.

Porto Alegre, 22/05/2025.



[1] https://www.migalhas.com.br/quentes/430769/credito-entre-cooperativa-e-cooperado-e-extraconcursal-decide-stj

[2] O Seguro e as Sociedades Cooperativas. Relações Jurídicas Comunitárias. Livraria do advogado editora, 2008, página 19.

[3] Do Ato Cooperativo.
Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais.
Parágrafo único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.

[4] Art. 1º da lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falências).

[5] Informativo Migalhas acima citado.

[6] Inciso II, do seu artigo 2º.