Buscar:

Breves comentários sobre regras sobre seguro constantes da Lei nº 14.967/2024 (Estatuto da Segurança Privada e da Segurança das Instituições Financeiras)

Imprimir PDF
Voltar

Por João Marcelo dos Santos (*)

joao 23092024

Trataremos aqui das regras de seguros constantes da Lei nº 14.967, de 9 de setembro de 2024, o Estatuto da Segurança Privada e da Segurança das Instituições Financeiras. Essas regras tratam especificamente de seguros no âmbito do cumprimento do Estatuto.

Nada obstante o objeto específico da Lei nº 14.967/2024, a inserção das regras de seguro em questão ocorre efetivamente como parte das regras que tratam da segurança privada e da segurança das instituições financeiras.

Por outro lado, talvez pela falta de foco específico do legislador na matéria securitária, nota-se uma carência de cuidado técnico na redação dessas regras sobre seguros. Vejamos inicialmente os arts. 61 e 62:

Art. 61. Nenhuma sociedade seguradora poderá emitir, em favor de estabelecimentos financeiros, apólice de seguros que inclua cobertura garantindo riscos de roubo e furto qualificado de numerário e outros valores, sem comprovação de cumprimento, pelo segurado, das exigências previstas nesta Lei.

Parágrafo único. As apólices com infringência do disposto neste artigo não terão cobertura de resseguros.

Art. 62. Nos seguros contra roubo e furto qualificado de estabelecimentos financeiros, serão concedidos descontos sobre os prêmios aos segurados que possuírem, além dos requisitos mínimos de segurança previstos nesta Lei, outros meios de proteção, na forma do regulamento.

O caput do art. 61 traz um comando interessante, de efetivo tratamento do seguro como instrumento auxiliar de gerenciamento de risco, uma de suas vocações.

Vale notar, a norma impõe às seguradoras um dever de fiscalização das atividades do segurado e a necessidade de regramento, eventualmente no contrato de seguro, como obrigação acessória do segurado, de eventual descumprimento desse dever da seguradora motivado por ação ou omissão do segurado. Esse deve ser um ponto de atenção das seguradoras, com o gerenciamento de risco ocupando posição central na operação.

Já o parágrafo único do art. 61 traz a previsão de que “As apólices com infringência do disposto neste artigo não terão cobertura de resseguros”.

Ocorre que a seguradora pode ser lesada pelo segurado, no procedimento de subscrição de risco. Em outras palavras, o seguro pode vir a ser contratado mesmo no caso de descumprimento, pelo segurado, das exigências previstas na Lei, e a despeito de terem sido adotados todos os procedimentos de verificação razoavelmente exigíveis da seguradora.

Isso ocorrendo, os seguros em questão não terão cobertura de resseguros. Não se prevê a nulidade da apólice ou a perda da cobertura securitária, mas tão somente a não cobertura de resseguro (uma espécie de exclusão legal da cobertura de resseguro), o que impacta principalmente na seguradora. Isso porque, nos termos do art. 14 da Lei Complementar nº 126/2007, “Os resseguradores e os seus retrocessionários não responderão diretamente perante o segurado, participante, beneficiário ou assistido pelo montante assumido em resseguro e em retrocessão, ficando as cedentes que emitiram o contrato integralmente responsáveis por indenizá-los.”.

Entende-se o dilema do Legislador, que não quis “premiar a seguradora” com a exclusão da cobertura de seguro no caso de a subscrição “falhar”. Contudo, a solução encontrada foi inadequada. Melhor teria sido esquecer a regra do art. 61. O resultado é a penalização da seguradora, eventualmente, por uma ação ou omissão do segurado, que permanecerá coberto pelo seguro mesmo tendo descumprido a Lei.

Além disso, o art. 62 estabelece a obrigatoriedade de concessão de descontos pelas seguradoras aos segurados que possuírem, além dos requisitos mínimos de segurança previstos na Lei, outros meios de proteção, na forma do regulamento. O que se impôs foi, na realidade, um agravamento para quem simplesmente cumprir a Lei, ainda que, do ponto de vista do risco, a seguradora avalie que a medida adicional adotada pouco ou nada impacta no risco coberto.

Esse incentivo errado poderá gerar, de um lado, grande número de medidas não previstas na Lei e que implicarão em direitos subjetivos dos segurados a descontos, ainda que tais medidas sejam eventualmente ineficazes do ponto de vista do gerenciamento do risco. De outro, os segurados que cumprirem a lei, ainda que o façam de modo especialmente adequado, terão necessariamente que ser “penalizados” relativamente a segurados que tenham adotado quaisquer medidas adicionais.

A norma, para dizer o mínimo, é uma intervenção inadequada que, como frequentemente ocorre nesses casos, é também de difícil fiscalização.

Por fim, cria-se um seguro quase obrigatório (quase, porque pode ser substituído por medidas internas do segurado). Vejamos:

Art. 14. O capital social mínimo integralizado e necessário para obtenção da autorização para o desenvolvimento das atividades dos prestadores de serviço de segurança privada será:

I – de R$ 2.920.000,00 (dois milhões, novecentos e vinte mil reais) para as empresas de transporte de numerário, bens ou valores, de R$ 292.000,00 (duzentos e noventa e dois mil reais) para as empresas de gerenciamento de risco em operações de transporte de numerário, bens ou valores e de R$ 730.000,00 (setecentos e trinta mil reais) para as demais empresas de serviço de segurança;

II – de R$ 292.000,00 (duzentos e noventa e dois mil reais) para as escolas de formação de profissionais de segurança; e

III – de R$ 146.000,00 (cento e quarenta e seis mil reais) para as empresas de monitoramento de sistemas eletrônicos de segurança privada.

§ 1º No caso de prestação simultânea de dois ou mais serviços constantes do art. 5º, deverão ser somados aos mínimos previstos nos incisos I, II e III do caput deste artigo R$ 146.000,00 (cento e quarenta e seis mil reais) por serviço adicional autorizado, nos termos desta Lei.

§ 2º O valor referido na parte final do inciso I do caput será reduzido a 1/4 (um quarto) quando as empresas de serviço de segurança privada que prestem exclusivamente os serviços de segurança patrimonial e de eventos, previstos nos incisos I e II do caput do art. 5º, atuarem sem utilização de arma de fogo.

§ 3º Os prestadores de serviço de segurança privada deverão comprovar a constituição de provisão financeira ou reserva de capital, ou contratar seguro-garantia, para adimplemento de suas obrigações trabalhistas, tributárias, previdenciárias e oriundas de responsabilização civil.

§ 4º Os valores previstos neste artigo serão revisados periodicamente na forma de regulamento.

O primeiro problema, não somente com relação ao seguro, mas também quanto à alternativa das medidas internas, é que não se sabe o valor da provisão financeira ou reserva de capital referidas na regra ou da importância segurada. De qualquer modo, pode-se vislumbrar a possibilidade de ação regulamentadora do Conselho Nacional de Seguros Provados – CNSP, com base no art. 32, inciso III, do Decreto-Lei nº 73/1966. Talvez o CNSP venha, inclusive, na prática, a estabelecer a referência da provisão financeira ou reserva de capital referidas na regra.

O segundo problema é que a regra do seguro quase obrigatório faz referência a “seguro-garantia, para adimplemento de suas obrigações trabalhistas, tributárias, previdenciárias e oriundas de responsabilização civil”. Ocorre que o seguro garantia não é vocacionado para cobrir tais riscos.

No caso da responsabilização civil, especificamente, trata-se de uma quase impossibilidade técnica, exceto pela responsabilidade civil contratual.

Nos demais, exceto pela trabalhista, estar-se-ia criando seguro garantia no qual o Estado (qual esfera, Federal, Estadual ou Municipal?) é o segurado, o que dependerá de prévia identificação ou estimação, no processo de subscrição, dos valores de tributos a serem devidos na vigência da apólice. Difícil vislumbrar como isso será feito.

No caso trabalhista, pergunta-se, os segurados seriam os empregados ou colaboradores que pudessem vir a ser considerados credores de obrigações trabalhistas? Tratar-se-ia de um seguro garantia sujeito a fluxo permanente de “averbação” de segurados?

Enfim, o CNSP pode até chamar de seguro garantia algo que, no momento, não o seria estritamente, mas a Lei criou para o regulador, nesse ponto, no mínimo, um desafio.

Em suma, a existência, por si só, de regras referentes a seguros no Estatuto da Segurança Privada e da Segurança das Instituições Financeiras (Lei nº 14.967/2024), não é um problema. O problema é o conteúdo de algumas delas, que podem gerar riscos, dificuldades e controvérsias para tais operações de seguros.

(*) João Marcelo dos Santos é sócio Fundador do Santos Bevilaqua Advogados Associados, ex-Diretor e Superintendente substituto da Susep, ex-Presidente da Diretoria e atual Vice-Presidente do Conselho Superior da Academia Nacional de Seguros e Previdência e Membro do Board da Global Insurance Law Connect, rede mundial de escritórios de advocacia especializados em seguros.

23.09.2024