Por Anna Guiomar Vieira Nascimento (*)
1. Duas tragédias noticiadas pela mídia nacional nos deixaram perplexos. A primeira delas foi o naufrágio de uma embarcação que saiu do Município de Santarém com destino à Vitória do Xingú no Estado do Pará. Neste evento o número de mortos noticiado foi de 21. O outro naufrágio terrível se deu na travessia de Mar Grande para a capital do Estado da Bahia, no qual o número de vítimas foi de 19 pessoas, até o momento. Nada, nada recompõe o valor de uma vida, as lesões físicas e as psíquicas resultantes de tais fatos. Mas temos que tratar, obrigatoriamente, das indenizações que deveriam ser pagas às famílias dos mortos e aos sobreviventes dos naufrágios.
2. O seguro que cobriria os sinistros ocorridos nos eventos acima relatados seria o Seguro DPEM. A cobertura abrangeria morte, invalidez permanente e despesas com assistência médica e suplementares. A sua suspensão foi divulgada pela Circular nº 4/2016 da Diretoria de Portos e Costas da Marinha do Brasil, em consequência de uma serie de revogações normativas que se exporá a seguir.
3. O seguro DPEM teve a sua eficácia suspensa pela seguinte alteração normativa: o caput do art. 14 da Lei nº 8.374/91 tornava obrigatória a comprovação do pagamento do seguro para se proceder à inscrição da embarcação na Capitania dos Portos. Foram acrescidos pela Lei nº 13.313/16 àquele artigo 14º, os parágrafos 3º e 4º estabelecendo que a exigência do seguro ficava sem efeito se não houver no mercado sociedade seguradora que oferecesse o seguro DPEM. E tal fato ocorreu. Em sendo assim, coube à Superintendência de Seguros Privados – SUSEP informar à autoridade competente – a Marinha do Brasil – a falta de oferta do seguro. Apesar de ter havido uma readequação das condições tarifárias do Seguro DPEM através da Circular nº 530 de 03 de março de 2016, ainda assim, alegou-se que a sua comercialização era deficitária. Mas, a nosso ver, era deficitária por não estar regulamentada nos mesmos moldes do Seguro DPVAT.
4. A Lei nº 13.313/16 também modificou o art. 10 da Lei nº 8.374/91 no sentido de determinar que “as indenizações por invalidez permanente ou as despesas de assistência médicas e suplementares causadas por embarcações não identificadas ou que estejam inadimplentes com o Seguro DPEM passaram a ser devidos por um fundo de direito privado constituído administrado, gerido, representado pela Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias S.A. – ABGF, empresa pública na forma que dispuser o CNSP.” Mas esse não é o caso das tragédias aqui tratadas , cujas embarcações estão identificadas e que deveriam ter o seguro DPEM, cuja obrigatoriedade jamais poderia estar suspensa. Como se institui um seguro de tamanha importância e se retira a sua exigibilidade através de uma alteração de lei sem se levar em conta os enormes prejuízos que isso trará para a população mais carente? Sim, porque é sempre esta população que sofre as piores consequências. Além do mais, tirar do âmbito do órgão regulador de seguros o Fundo privado que irá pagar algumas das indenizações não é nada pragmático. Ademais, o fundo que irá pagar as indenizações devidas, sejam elas de embarcações identificadas ou não identificadas, adimplentes ou inadimplentes deve ser o mesmo. Por fim, este fundo deveria ser similar, senão idêntico ao do Seguro DPVAT que atua no mercado e não é deficitário.
5. Note-se que, ABGF é uma empresa pública vinculada ao Ministério da Fazenda , instituída pela Lei nº 12.712/12, e tem como um dos seus objetivos “a constituição, a administração, a gestão e a representação do fundo de que trata o art. 10 da Lei nº 8.374, de 30 de dezembro de 1991, observadas as disposições estabelecidas pelo órgão regulador de seguros. (Incluído pela Lei nº 13.313, de 2016).” Além disso, “a ABGF não estará obrigada a conceder garantia contra risco em casos individuais que não obtiverem contratação no mercado de seguros em razão de recusa das seguradoras privadas.” Ou seja, a nosso ver, a ABGF poderá recusar a contratação do Seguro DPEM da mesma forma que as seguradoras privadas vinham fazendo.
6. Na verdade o que se observa na legislação que rege o Seguro DPEM é que há uma fragilidade na sua cobrança que deveria ser feita como no Seguro DPVAT, sendo administrado até mesmo por um consórcio como ocorre naquele seguro, como já dito. Observe-se que o Seguro DPVAT foi instituído pela Lei nº 6.194/74 (alterada posteriormente pela Lei nº 8.441/92), sendo que, posteriormente, o Conselho Nacional de Seguros Privados- CNSP baixou a Resolução nº 001/75 que estabeleceu as suas normas disciplinadoras. Estas normas estabeleceram a obrigatoriedade do seguro DPVAT a ser pago pelos proprietários dos veículos automotores sujeitos a registro e licenciamento, conforme o Código Nacional de Trânsito. Nesse início não havia qualquer vinculação dos DETRANs no processo de pagamento do seguro, o que levou a uma grande inadimplência. O seguro era obrigatório, mas a sua cobrança estava fragilizada, inviabilizando que o mesmo cumprisse a sua função social. A partir da Resolução nº 06/86 ficou estabelecido que as Seguradoras formariam um “convênio específico” para a operacionalização do Seguro DPVAT. Foi criado o Convênio DPVAT formado por seguradoras que instituíram a Federação Nacional das Empresas de Seguros – FENASEG como sua gestora. A FENASEG celebrou Convênios de Cooperação Operacionais com o DENATRAN e com os DETRANS estaduais. Esses convênios foram de extrema importância para a operacionalização do Seguro DPVAT. O convênio em questão estipulou que qualquer das seguradoras pagaria a reclamação que lhe fosse apresentada pelos segurados (item 1.2 da Resolução CNSP nº 06/86). A partir da Resolução CONTRAN nº 721/88 o Seguro DPVAT além de ser um encargo cujo pagamento deveria ser feito anualmente juntamente com o IPVA, passou a ser também um requisito essencial para permitir o licenciamento anual de veículos. A impressão dos formulários de licenciamento acompanhados do bilhete de seguro foi outro fator essencial para uma efetiva arrecadação do seguro obrigatório. Em consequência disso houve uma significativa melhora na arrecadação do Seguro DPVAT. Posteriormente foi criada a Seguradora Líder DPVAT a partir de 1º de janeiro de 2008, que passou a fazer a gestão do Seguro DPVAT e deu continuidade aos convênios com os Departamentos Estaduais de Trânsito. Essa trajetória deve servir como caminho norteador para uma efetiva arrecadação e cumprimento da função social do Seguro DPEM.
7. Finalmente, conclui-se que para a resolução da fragilidade da cobrança do Seguro DPEM deve ser o seu pagamento como pré-requisito para a inscrição, provisão de registro, termo de vistoria ou certificado de regularização da embarcação na Capitania dos Portos ou em repartições por esta designada. A cobrança do Seguro DPEM em um mesmo documento para a inscrição da embarcação na Capitania dos Portos seria um mecanismo eficiente para a sua cobrança, tornando possível a associação das Seguradoras atuantes neste ramo, seja através de convênio ou de consórcio para atuarem de forma não-deficitária ou mesmo lucrativa.
8. A Superintendência de Seguros Privados – SUSEP tem competência e experiência para legislar a respeito do Seguro DPEM nos mesmos moldes que vem fazendo com o Seguro DPVAT e esta deveria ser a solução a ser adotada, pois, só assim, com uma administração técnica e eficiente, as famílias das vítimas fatais de tais tragédias e os seus sobreviventes seriam indenizados. Retirar do universo jurídico um seguro de tamanha importância acarreta graves consequências como as que estão ocorrendo nos episódios aqui tratados e em muitos outros que não estão tendo a atenção da mídia.
(*) Anna Guiomar Vieira Nascimento é Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia.
(28.08.2017)