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Artigo: O impacto dos defaults da Light e Americanas nos portfólios de crédito das Entidades de Previdência – por Marcelo Otavio Wagner*

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Casos recentes de default de dívida no Brasil com grande repercussão como Light (LIGT3) e Lojas Americanas (AMER3) chamam atenção dos gestores institucionais sobre o dilema de, por um lado, buscar maiores retornos, porém, por outro, expor os portfólios a longos e caros processos de recuperação. Apenas em operações no mercado de capitais local, estima-se que haverá quase R$ 100 bilhões em vencimentos até o final de 2024. A depender da evolução das condições de mercado nos próximos meses, algumas das empresas emissoras podem ter dificuldade no pagamento ou na rolagem dessas dívidas.

Dentre os institucionais, as Entidades Fechadas de Previdência Complementar – EFPC – são de suma importância para o país, responsáveis hoje por cerca de R$ 1,2 trilhão em poupanças previdenciárias de mais de 3 milhões de indivíduos. Desta forma, é fundamental que esses participantes e assistidos (os clientes), estejam protegidos por robustos processos de gestão de risco de crédito nas Entidades, para que essas atinjam o seu principal objetivo de entregar os benefícios previdenciários e, dessa forma, pavimentar uma longevidade segura e tranquila para todos.

Na realidade, eventos de default trazem à tona a grande assimetria que sempre existiu nos investimentos em títulos privados. Se tudo der certo, o credor recebe o principal e os juros cobrados. Se der errado, compromete-se todo o capital que foi investido. No caso de Entidades de Previdência, a assimetria se torna ainda mais relevante, não só pela questão de lidar com recursos de aposentadoria, mas pelo fato de que, caso uma operação de crédito entre em curso anormal, o consumo de estrutura, os custos e o tempo gasto na tentativa de recuperar majoram em muito o problema. Vamos nos lembrar que a EFPC é bastante regulada, não possui estrutura interna de recuperação como bancos, tampouco a grande flexibilidade com que, em muitos casos, gestores de fundos podem contar.

Tratando dos dois casos citados no início, é preciso que se esclareça que há enorme diferença entre risco e incerteza, pois o primeiro, conforme abordaremos adiante, pode ser avaliado e estimado. Os episódios Light e Americanas perigosamente elevam o nível de incerteza no mercado doméstico de capitais, pois afetam (i) a segurança jurídica e (ii) a confiança nas peças contábeis.

O caso Light – segurança jurídica:

Do ponto de vista econômico, a eficiência dos mercados está diretamente relacionada à segurança dos contratos e à objetiva observância às leis. O arcabouço legal que doutrina os processos de recuperação e falência no Brasil passou por ajuste há poucos anos, mas, segundo especialistas, ainda está longe do ideal. O lamentável imbróglio causado pela atípica condução do processo de RJ da Light tem gerado muita insegurança, com reflexo na atratividade do mercado de dívida do país e, certamente, na precificação futura de riscos. Ou seja, o custo de capital para empreender no país, que precisaria baixar, poderá subir.

Como o grupo empresarial ainda detém ativos operacionais interessantes, a solução será exitosa na medida em que acionistas e credores cheguem a um denominador comum na redistribuição desses interesses, em benefício da continuidade das operações. Tecnicamente, incorrerá na absorção pelos credores de um nível de perda aceitável, dado que o default já se materializou.

O caso Americanas – confiança nas peças contábeis:

As investigações estão em andamento e, caso se confirme a ocorrência de uma bilionária fraude contábil, o mercado de dívida no Brasil andará algumas casas para trás na imprescindível confiança dos investidores no arcabouço contábil das companhias. Posso assegurar que mesmo os melhores processos de gestão de riscos de crédito são ineficientes em detectar fraudes em demonstrações financeiras. Tais processos objetivam aferir riscos e probabilidades de default no pressuposto de que as informações fornecidas pelas companhias são precisas, transparentes e, principalmente, honestas.

As condições em que o problema ocorreu, bem como o setor de atuação – comércio varejista – tornam a solução e recuperação muito complicadas, sob a ótica dos credores, notadamente aqueles que não detém garantias reais. Fica a expectativa de que, confirmado o crime, haja exemplar punição aos responsáveis.

Tendo abordado o problema do elevado grau de incerteza gerado pelos dois casos, vamos agora tratar da aplicação de melhores práticas em gestão de riscos de crédito, o que torna possível mitigar consideravelmente a frequência e, principalmente, o impacto de casos de default nos portfólios de nossas EFPC.

Fazendo um rápido sobrevoo em questões mais técnicas, há maneiras de estimar antecipadamente o volume de perda ao qual um portfólio de títulos privados está exposto:

Expected Loss (EL) = EAD (Exposure at Default) X PD (Probability of Default) X LGD (Loss Given Default)

A expressão em inglês “Expected Loss” pode soar contraintuitiva para pessoas não familiarizadas com a gestão destes riscos. Alguém diria: Perda esperada, como assim? Eu não espero nenhuma perda! Tenho convivido há muitos anos com este tipo de discussão e a experiência demonstra que processos decisórios de investimentos devem ser objetivos e bem documentados, prevendo como um ativo é aceito no portfólio e, também, como deve ser tratado caso algo não aconteça conforme previsto.

Mesmo as pessoas que não estão no dia a dia da gestão institucional de ativos já devem ter ouvido a frase: aquela empresa tem rating AAA, ou aquela operação foi classificada como risco X, Y, Z. Em máxima síntese, a empresa ou a operação foram avaliadas sob a ótica de perda esperada.

Antes de encerrar com a parte técnica, precisamos falar de três práticas importantes que auxiliam bastante na melhoria da relação risco X retorno de portfólios de crédito:

1. Precificação de risco – a taxa de juros cobrada do emissor da dívida deve ser proporcional à sua probabilidade de não pagar. Quanto maior o risco, maiores os juros a serem exigidos. Uma afirmação bem óbvia, mas, às vezes, em mercados ainda restritos e pouco diversificados como o brasileiro, esta lógica pode ficar distorcida;

2. Diversificação – quanto maior, melhor! Vale aquela máxima de nunca colocar todos os ovos numa única cesta. Os melhores portfólios são sempre aqueles que contam com boa diversidade entre setores, regiões, prazos e, também, níveis de risco; e,

3. Efeito concentração – aqui a lógica muda um pouco, não estamos falando do nosso portfólio, mas sim da representatividade do investidor institucional na base de credores do emissor da dívida. Como regra de bolso, quanto menor essa relevância, melhor para todos.

Não poderia deixar de mencionar que, nos últimos anos, algumas gestoras locais têm se especializado muito na estruturação técnica destes portfólios, trazendo em suas estratégias e regulamentos todas as melhores práticas que estamos tratando aqui. Desta forma, para as EFPC, um bom processo de mapeamento (screening) e avaliação técnica (due dilligence) certamente resultará na incorporação de adequados parceiros de negócio nesta empreitada.

A extensão dos eventos Light e Americanas serve como sinal de alerta para Dirigentes e Conselheiros das EFPC sobre a importância de exigir que os gestores, sobretudo o Administrador Estatutário Tecnicamente Qualificado – AETQ, iniciem todo e qualquer processo de investimentos propondo e definindo o grau de apetite a riscos e a tolerância máxima a perdas nos portfólios. Aqui vai uma regra de ouro: antes de falar em retornos, é preciso falar de riscos. Impossível prever uma fraude ou uma recuperação judicial inusitada, mas plenamente possível delimitar a extensão destas adversidades nos portfólios.

É também fundamental que essa prévia discussão sobre riscos tenha horizonte de longo prazo, seja fundamentada e bem documentada, contando com suporte de especialistas internos e/ou, quando necessário, de parceiros externos sem qualquer conflito de interesse, ou seja, que não sejam remunerados pelas gestoras de fundos ou outros intermediários vendedores. Caso exista tal remuneração, ela deve ser informada e detalhada previamente à EFPC, para sua análise e decisão, caso a caso.

Hoje em dia, no agregado, a parcela dos portfólios das EFPC investida em títulos privados ainda é pequena e com bom nível de rating. Casos isolados podem ocorrer, mas é importante salientar que não há qualquer indício de risco estrutural para os Sistemas Fechado e Aberto de Previdência no Brasil. No futuro, a exemplo de outros mercados mais desenvolvidos, a proporção de títulos privados deverá certamente crescer. Por isso a importância de crescer de maneira sustentável.

Exemplos como Light e Americanas são infelizes episódios recentes que não deveriam se repetir, apesar disso, a construção de portfolios diversificados, orientados e ancorados em avançadas técnicas de gestão de riscos são a grande ferramenta que as EFPC possuem para evitar expor a riscos desnecessários as poupanças previdenciárias de mais de 3 milhões de brasileiros.

*Marcelo Otavio Wagner é sócio da MOW CAPITAL Assessoria e Treinamento Ltda. Possui certificação ICSS Investimentos, com longa experiência na gestão institucional de ativos, tendo atuado como Diretor de Investimentos (AETQ) da Previ e anteriormente como Diretor Financeiro da Brasilprev S.A.

Fonte: Abrapp em Foco, em 25.09.2023.