O sistema previdenciário brasileiro atravessa uma crise que, embora amplamente anunciada, ainda não foi enfrentada com a profundidade técnica e a responsabilidade intergeracional que o tema requer. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), responsável pela administração do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), enfrenta um déficit crônico que não mais pode ser considerado conjuntural, e sim estrutural. No exercício de 2024, esse déficit superou R$ 320 bilhões, refletindo a maturação de distorções acumuladas ao longo de décadas.
A origem desse desequilíbrio é múltipla e interligada. Não se trata apenas de um descompasso entre receitas e despesas, mas de um colapso do modelo de financiamento baseado na repartição simples, concebido para uma estrutura demográfica hoje inexistente. A razão de dependência previdenciária – proporção entre trabalhadores ativos e beneficiários inativos – deteriora-se progressivamente, à medida que o Brasil envelhece em ritmo acelerado e a informalidade no mercado de trabalho permanece elevada.
As estatísticas demográficas e atuariais são inequívocas. A taxa de fecundidade caiu de 6,3 filhos por mulher na década de 1960 para menos de 1,7 atualmente, abaixo do nível de reposição populacional. Simultaneamente, a expectativa de vida ao nascer aproxima-se dos 78 anos, mantendo tendência de crescimento contínuo. A combinação desses fatores compromete o equilíbrio intertemporal do sistema, cuja sustentabilidade depende essencialmente da entrada contínua de novos contribuintes em número superior ao dos beneficiários.
Esse cenário, previsto há pelo menos três décadas, não foi enfrentado com a urgência necessária. Ao contrário, sucessivas reformas tímidas, focadas essencialmente em ajustes paramétricos, adiaram a reestruturação profunda do sistema. A Emenda Constitucional n.º 103, de 2019, representou um avanço institucional ao introduzir idade mínima, regras de transição mais rígidas e nova sistemática de cálculo dos benefícios. Entretanto, os efeitos fiscais esperados têm sido mitigados pela lentidão de sua implementação, pela existência de exceções e pela manutenção de regras específicas para determinados segmentos profissionais.
É necessário reconhecer que a reforma de 2019, embora relevante, revelou-se insuficiente. As projeções do Ministério da Fazenda e da Secretaria de Previdência indicam que, mesmo com essa reforma em vigor, o déficit do RGPS continuará crescendo em termos reais e relativos ao Produto Interno Bruto (PIB), podendo alcançar 5% do PIB nas próximas três décadas, caso medidas adicionais não sejam adotadas. A projeção do passivo atuarial implícito, que incorpora obrigações futuras descontadas pelas receitas esperadas, já ultrapassa R\$ 8 trilhões. Tal valor, embora não reconhecido explicitamente nas demonstrações contábeis oficiais, constitui um passivo efetivo, comprometendo a sustentabilidade fiscal e reduzindo a capacidade de investimentos públicos em áreas sociais prioritárias, tais como saúde, educação e infraestrutura.
Como atuária, e tendo minha experiência profissional ligada ao estudo da solvência de sistemas previdenciários, é imperioso externar minha profunda preocupação com o atual estágio de deterioração do RGPS. O modelo vigente tornou-se incompatível com a realidade demográfica e econômica do país, e insistir em sua manutenção sem reformas adicionais implicará, em breve, a incapacidade do Estado em honrar compromissos básicos com a população.
Para reverter essa trajetória, não basta repetir o ciclo de reformas pontuais. O Brasil necessita de uma agenda previdenciária estruturante, fundamentada em princípios atuariais sólidos, que contemple simultaneamente a correção de distorções históricas, a modernização da gestão contributiva e a diversificação dos mecanismos de financiamento.
O primeiro pilar dessa agenda deve consistir na ampliação da base arrecadatória, priorizando a redução da informalidade e promovendo a inclusão previdenciária dos trabalhadores autônomos, intermitentes e de baixa renda. Isso exige não apenas ajustes normativos, mas também o uso intensivo da tecnologia, incluindo cruzamento avançado de dados cadastrais, integração plena dos sistemas da Receita Federal, do CNIS e do eSocial, além da adoção de modelos analíticos avançados para identificação de inadimplências, subdeclaração de rendimentos e fraudes.
Em segundo lugar, é necessária a implementação de um mecanismo automático de ajuste da idade mínima para aposentadoria, diretamente vinculado à evolução da expectativa de sobrevida aos 65 anos. Esse modelo, já adotado com sucesso por países como Itália, Suécia, Finlândia e Portugal, permite alinhar de forma sustentável o tempo contributivo e o período de usufruto dos benefícios previdenciários, conferindo estabilidade atuarial e previsibilidade institucional ao sistema.
Em terceiro lugar, é imperativo introduzir no Brasil um pilar de capitalização parcial e complementar, sobretudo para trabalhadores com maior capacidade contributiva e aqueles que atuam fora das relações formais de emprego. Essa medida não significa substituir integralmente o regime solidário por um modelo individualizado, mas sim instituir um sistema híbrido, multipilar, conforme preconizado pelas diretrizes da Associação Internacional de Seguridade Social (ISSA), e já implementado com êxito em diversas economias avançadas e emergentes.
O quarto eixo de intervenção é o fortalecimento da previdência complementar aberta e fechada. O incentivo à adesão voluntária aos planos instituídos, especialmente por meio de associações e entidades de classe, pode contribuir para a formação de reservas individuais e aliviar a pressão estrutural sobre o RGPS em médio e longo prazos. Para tal, é necessário delinear incentivos tributários progressivos que não favoreçam apenas os trabalhadores de maior renda, mas ampliem o acesso também àqueles de rendimentos médios e baixos.
Complementarmente, merece destaque a proposta da Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar (Abrapp), relativa à adesão automática aos planos fechados de previdência complementar. Esse mecanismo, denominado internacionalmente automatic enrollment, aproveita o comportamento inercial dos indivíduos para aumentar substancialmente a participação previdenciária complementar, reduzindo as pressões fiscais sobre o regime público. Contudo, sua adoção exige rigorosas adequações regulatórias e governança robusta das entidades administradoras, garantindo segurança, transparência e proteção efetiva dos participantes.
Finalmente, é imperioso que o Brasil implemente, de maneira consistente e permanente, uma política robusta de educação previdenciária. O desconhecimento sobre o funcionamento do sistema, suas regras e fundamentos atuariais favorece resistências às reformas e comportamentos oportunistas. Assim, a educação previdenciária deve ser incorporada aos currículos escolares básicos e superiores e amplamente disseminada por campanhas públicas, aplicativos e simuladores previdenciários.
A solução da crise previdenciária brasileira requer, indubitavelmente, coragem técnica, perspectiva estratégica de longo prazo e compromisso com a justiça intergeracional. O prazo para adoção de medidas graduais já se exauriu. O custo das distorções acumuladas está evidente, e sua magnitude demanda soluções estruturantes, e não apenas paliativas. Como atuária, considero esse um dos desafios mais urgentes e relevantes da nossa geração. Quanto mais tempo adiarmos a resposta, maior será o custo – social, fiscal e ético – a ser pago.
*Sócia da Consultoria Assistants
Fonte: Abrapp em Foco, em 29.05.2025.