Artigo – Política Monetária no Mundo Pós-Pandemia: O Fim dos Ciclos “Normais” e o Reinado da Política Fiscal – Por Tomás Goulart*


A condução da política monetária global mudou radicalmente no período pós-pandemia. Os ciclos econômicos que antes seguiam padrões relativamente previsíveis – onde taxas de juros mais altas arrefeceram a economia e taxas mais baixas a estimulavam – hoje não reagem tão claramente dessa forma. Nos últimos anos, vimos o mercado de trabalho global se manter surpreendentemente firme, mesmo diante de políticas monetárias restritivas. Esse fenômeno, que desafia os manuais clássicos de economia, tem uma explicação central: a mudança no papel e no peso da política fiscal nas economias modernas.
Durante a pandemia, praticamente todos os países do mundo adotaram políticas fiscais fortemente expansionistas. Houve um medo generalizado de que o choque de demanda provocado pelo isolamento social gerasse uma recessão prolongada. Em contraste com a resposta à crise financeira de 2008, quando as medidas foram predominantemente de contenção de despesas (como exemplificado pelo movimento Tea Party nos EUA e os ajustes severos na Europa durante a crise de dívida soberana), a reação à pandemia foi a injeção maciça de recursos públicos.
Se em 2011, após o rebaixamento da dívida americana pela S&P, a resposta do governo Obama foi sinalizar responsabilidade fiscal, hoje a postura é bem diferente. As trajetórias fiscais ao redor do mundo se deterioraram, sem pressa dos governos em reverter déficits. Nos Estados Unidos, por exemplo, o déficit primário voltou a crescer de maneira robusta, enquanto a dívida pública segue trajetória de alta. Na Europa, mesmo a Alemanha – que historicamente prezava por austeridade devido aos traumas inflacionários derivados da hiperinflação do início do século XX – anunciou planos de aumento expressivo nos gastos públicos. Na China e no Japão, déficits elevados e aumento da dívida são a norma, assim como no Reino Unido, onde o episódio de Liz Truss e a reação do mercado ao seu mini-orçamento de 2022 ilustraram os riscos de excessos fiscais.
A consequência desse novo paradigma fiscal é que os ciclos de política monetária perderam força. Mesmo com taxas de juros mais altas, as economias seguem sustentadas por gastos públicos robustos. O resultado é um crescimento econômico menos responsivo à política monetária, mercado de trabalho resiliente e inflação mais persistente.
Na década passada, o ambiente era o oposto: déficits em queda, choques positivos de oferta (com a revolução do shale oil nos EUA e o excesso de exportações de bens manufaturados pela China) e inflação consistentemente abaixo das metas dos principais bancos centrais. Esse cenário permitiu uma era de juros extremamente baixos, o que, por sua vez, facilitou a gestão das dívidas públicas, com a emissão de títulos de longo prazo a custos muito baixos.
Agora, vivemos o reverso: déficits elevados, choques de oferta mais complexos (guerra na Ucrânia, desglobalização, transição energética) e inflação estruturalmente mais alta. A dinâmica fiscal deteriorada pressiona a necessidade de emissão de dívida, enquanto os bancos centrais enfrentam o dilema de subir juros para conter a inflação sem conseguir frear o crescimento ou reduzir o desemprego de maneira eficaz. A consequência? Um ambiente de juros nominais mais elevados, mas com juros reais relativamente baixos, pois a inflação elevada corrói o valor real da dívida. Em outras palavras, o “calote disfarçado” via inflação tornou-se a solução para os desequilíbrios fiscais ao redor do mundo.
Apesar do papel coadjuvante da política monetária nesse novo cenário fiscal, os bancos centrais ainda dispõem de ferramentas importantes, incluindo políticas não convencionais, para tentar influenciar a economia. Além das tradicionais elevações e cortes nas taxas de juros, instrumentos como o quantitative easing (compra de ativos), o forward guidance (orientação futura das políticas) e intervenções direcionadas no mercado de crédito têm sido usados para mitigar choques e tentar ancorar expectativas inflacionárias. Em 2025, observa-se uma tendência de normalização gradual das taxas de juros, com muitos bancos centrais iniciando cortes moderados para apoiar o crescimento econômico, ajudado pela forte queda nos preços de petróleo e na perspectiva de desaquecimento global advindos das tarifas. No entanto, o sucesso dessas medidas depende da coordenação com políticas fiscais responsáveis, pois isoladamente a política monetária enfrenta limitações para conter pressões inflacionárias em um ambiente de gastos públicos robustos.
Esse fenômeno não é exclusivo dos Estados Unidos ou da Europa: é global. A inflação, nesse novo regime, torna-se uma ferramenta para reduzir o peso real das dívidas públicas. E como ninguém decreta um calote interno voluntário, a inflação cumpre esse papel – corroendo o valor real dos passivos estatais sem a necessidade de uma moratória explícita.
No Brasil, o impacto dessa mudança global é profundo. Nas últimas duas décadas, conseguimos melhorar o perfil da nossa dívida, alongar prazos e reduzir custos de financiamento, mesmo em meio a ciclos de aperto monetário. No entanto, enfrentamos o mesmo dilema das demais economias: não há apetite político ou social para reformas estruturais que reduzam despesas. O teto de gastos foi desfigurado, a trajetória fiscal é preocupante e o governo continua sem apresentar um plano crível de consolidação fiscal de médio prazo. Assim como outros países, nossa estratégia se resume a “tolerar” inflação mais alta para reduzir juros reais.
Olhando para trás, é inevitável recordar o período de 2016-2017, quando o Congresso entregou uma agenda robusta de reformas, como o teto de gastos e a reforma trabalhista. Esses avanços geraram uma queda significativa no custo de financiamento da dívida pública, permitindo que o Brasil emitisse papéis a taxas mais baixas e alongasse prazos. O resultado foi uma melhora substancial na dinâmica fiscal. Mas hoje, com o ambiente global adverso e a resistência social a novos ajustes ou aumentos de impostos, é difícil imaginar uma repetição desse cenário.
A consequência prática será um ambiente de inflação persistentemente acima da meta, dificultando um ambiente de Selic mais baixa. A política monetária seguirá elevada para tentar ancorar expectativas, mas sem conseguir gerar o efeito contracionista esperado sobre a atividade econômica, dado o suporte fiscal contínuo. Vivemos, portanto, em um mundo onde as taxas de juros nominais serão estruturalmente mais altas, na tentativa de comprimir os juros reais via inflação, o “ajuste invisível” para os desequilíbrios fiscais.
No longo prazo, esse arranjo tem limites. Inflação persistentemente alta corrói o poder de compra, reduz o bem-estar das famílias e pode gerar instabilidades políticas significativas. O risco é que, ao postergar o ajuste fiscal necessário, os países acabem enfrentando um ajuste desordenado no futuro, com consequências econômicas e sociais muito mais severas.
Portanto, a mensagem central é clara: no mundo pós-pandemia, a política fiscal passou a comandar o jogo, enquanto a política monetária tornou-se coadjuvante, muitas vezes lutando contra os efeitos expansionistas da primeira. O equilíbrio macroeconômico depende menos das decisões dos bancos centrais e mais da disposição – ou falta dela – dos governos em controlar seus déficits e conter o avanço das dívidas públicas.
No Brasil, assim como no resto do mundo, a inflação será o preço a pagar pela ausência de reformas estruturais e pela persistência de déficits elevados. A janela para resolver os problemas de forma ordenada está se fechando, e o desafio será enorme: manter a sustentabilidade da dívida sem abrir mão do crescimento econômico e da estabilidade social. A política monetária pode até subir ou descer os juros, mas sem o suporte de uma política fiscal responsável, ela continuará sendo apenas um remédio paliativo, incapaz de resolver o problema de fundo.
*Tomás Goulart é Economista-Chefe da Novus Capital
Fonte: Abrapp em Foco, em 05.06.2025.