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AVARIA GROSSA: o que é? Quando pode ser declarada? Tratamentos diversos nos planos extrajudicial e judicial

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Paulo Henrique Cremoneze, Advogado, especializado em Direito do Seguro e Direito dos Transportes (Marítimo), sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas Advogados Associados

Nem toda declaração de avaria grossa poder ser considerada verdadeiramente como tal: brevíssimas considerações de ordem prática.

Avaria Grossa – Transporte marítimo – Dano voluntário para salvaguarda de bens maiores – Dano ou gasto extraordinário feito com o propósito deliberado de salvar o que for possível do navio ou da carga transportada com resultado útil – Desnecessidade de aferição da causa antecedente pelas convenções internacionais – Necessidade de aferição criteriosa de causa antecedente para eventual reconhecimento pela legislação brasileira – Não reconhecimento dos efeitos da avaria grossa quando a causa antecedente ao dano voluntário derivar de culpa do próprio declarante (transportador) – Tipificação de abuso da declaração unilateral por parte do transportador – Dever de reparação ampla e integral do dano e dos prejuízos pelo causador – Diferentes acepções nos sistemas legais estrangeiros e brasileira – Primazia da garantia constitucional da reparação civil integral – Declaração unilateral não pode jamais beneficiar causador do dano – Disposição das regras de York/Antuérpia em contrato de adesão – Abuso contratual e cláusula “hardship” – Desequilíbrio das forças contratuais e das relações jurídicas – Avaria simples convertida indevidamente em avaria grossa – Análise cuidadosa das particularidades de cada caso concreto para a projeção ou não dos efeitos legais e econômicos da declaração de avaria grossa – Tradição jurídica brasileira diferenciada e exemplar.

Considerando recentes trabalhos brilhantemente desenvolvidos pelo meu amigo e sócio Christian Smera Britto (SMERA – Comissários de Avarias S/C Ltda. e BSI – Brazil Services International, Ltd., empresas parceiras do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados), envolvendo o tema avaria grossa e importantes direitos e interesses de praticamente todas as grandes seguradoras brasileiras e estrangeiras, além de muitos consignatários de cargas sem seguros (falo dos sinistros dos navios SAN FILIPE e MAERSK LONDRINA) percebi que a avaria grossa – assunto que nunca deixou de ser especialmente tratado no cenário maritimista – ganhou dimensões especiais e luzes intensas, merecendo, portanto, especial reflexão, até porque as medidas práticas e necessárias a serem tomadas pelos interessados num dado caso concreto, nem sempre se harmonizam, depois, com os enquadramentos e desdobramentos jurídicos, de tal modo que a avaria grossa trabalhada num primeiro momento e na esfera administrativa pode, perfeitamente, ser desqualificada como tal num segundo e definitivo momento, já no plano judicial, com consequências jurídicas e econômicas totalmente distintas daquelas necessariamente observadas quando de sua inicial declaração.

Vejamos:

O tema avaria grossa é um dos mais polêmicos do Direito Marítimo e, mais portanto, de especial interesse dos seus atores: armadores, fretadores, afretadores, transportadores, consignatários, embarcadores e seguradores de cargas.

Isso porque, o reconhecimento ou não da validade e da eficácia da avaria grossa implica desdobramentos importantes nos cenários jurídico e econômico de um dado caso concreto.

Basicamente, pode-se dizer que a declaração de avaria grossa, efetivamente reconhecida, válida e eficaz, amortizará os deveres do transportador marítimo num sinistro.

Por outro lado, o não reconhecimento da validade e da eficácia da declaração ou a sua descaracterização imporão ao transportador todos os ônus jurídico-econômicos do sinistro.

Daí a importância do estudo dessa figura legal, tendo-se em conta que existem diferentes formas de inteligência do assunto no âmbito administrativo e no cenário judicial, bem como diferentes tratamentos pelos sistemas legais estrangeiros e o sistema legal brasileiro.

Pois bem!

Em Direito Marítimo, existem dois tipos básicos de avarias: avaria simples, conhecida ainda por particular, e avaria grossa, também denominada avaria comum.

Por avaria, em sentido amplo, entende-se o dano havido ao bem confiado para transporte, ou seja, o prejuízo material resultante do transporte.

Trata-se de uma das modalidades de dano em transporte marítimo de cargas, caracterizando o inadimplemento contratual do transportador (a outra modalidade de dano é a falta na descarga, também conhecida por extravio de carga).

A avaria simples ou particular é a que recai sobre o bem transportado e tem como exclusivo responsável o transportador.

Não há muito que se falar sobre a avaria simples, já que é a mais comum em lides forenses e, de certa forma, inserida no contexto da própria responsabilidade civil do transportador marítimo.

Por isso, concentramos estudos na avaria grossa, esta sim passível de grandes controvérsias nas lides espalhadas pelo país.

Entende-se por avaria grossa aquela voluntariamente causada pelo capitão do navio com o propósito de evitar o mal maior, desde que o perigo arrostado não tenha sido causado pelo próprio comandante, tripulação ou equiparados.

Em outras palavras, “avaria grossa é toda despesa extraordinária ou dano causado ao navio ou à carga, voluntariamente, em benefício comum de ambos.”1

Trata-se de uma figura tradicional do Direito Marítimo e que se confunde com a própria história da navegação, até porque de âmbito internacional.

Além de tratados e convenções internacionais (os quais não se encontram em vigor no Brasil), a avaria grossa é também disciplinada pelo Código Comercial, na parte não revogada pelo Código Civil de 2002.

Instituto complexo e importante do Direito Marítimo, a avaria grossa reclama algumas condições particulares para ser efetivamente configurada:

a) origem voluntária. Precisa ser deliberadamente causada;

b) ser em benefício de todos os envolvidos e interessados no transporte marítimo de cargas, vale dizer, transportador marítimo e proprietários de cargas. O ato tem que visar à segurança comum e atender o interesse geral. A avaria grossa não pode ser apenas para atender ao interesse do transportador marítimo.

c) ser estritamente necessária para se evitar um mal maior. Todas as despesas e todos os sacrifícios são extraordinários e necessários para o não agravamento de uma situação danosa;

d) efetividade. A avaria grossa tem que ser plena e efetiva. Significa dizer que o mal maior precisa ser, de fato, arrostado. Não se vislumbrando a efetividade, isto é, o sucesso da empreitada, não há que se falar em avaria grossa.

e) necessidade de perigo real e iminente. O receio de tal, ainda que justo, não induz avaria grossa.

f) ausência de responsabilidade prévia do transportador. Não se fala em avaria grossa se o mal maior a ser evitado foi culposamente causado pelo próprio transportador marítimo.

Todos os elementos caracterizadores da avaria grossa, para sua declaração formal, devem estar presentes num determinado ato-fato jurídico, sob pena de não se desenhar a figura legal. Demais, os referidos itens seguem os ditames do princípio da proporcionalidade. Ora, se a proporcionalidade não estiver presente em cada um dos itens acima observados, impossível se falar em avaria grossa, pois não é razoável que despesas e sacrifícios enormes sejam empregados sem que o mal não seja, em essência, um mal maior.

O efeito imediato da avaria grossa é a exoneração parcial de responsabilidade do transportador marítimo, já que os prejuízos serão repartidos, proporcionalmente aos interesses, entre os envolvidos numa dada viagem, notadamente os proprietários, armadores e afretadores, de um lado, e os proprietários de cargas e seguradores, de outro, todos basicamente representados pelo binômio navio-carga.

Trata-se da aplicação do princípio da equidade, segundo os defensores da aplicação tradicional da figura da avaria grossa, pelo o qual os que se sacrificam pelo benefício geral, devem ser por todos ressarcidos. Da mesma forma, os que efetuam despesas para o bem comum, devidamente reembolsados.

Para tanto, o Código Comercial dispõe, artigos 784 e 785, a obrigação de fiança idônea por parte dos donos das mercadorias transportadas, a fim de fazer frente ao pagamento da contribuição da avaria grossa a que seus bens forem obrigados no rateio final. Em não sendo operada esta garantia, o transportador marítimo poderá, inclusive, requerer o depósito judicial das mercadorias e sua venda posterior.

Em que pese a tradição do Direito Marítimo e, em princípio, a razoabilidade do conceito da avaria grossa, bem como a equidade que se observa na ideia de rateio comum, posicionamo-nos contrários a manutenção da avaria grossa.

Hoje, o transporte marítimo não é mais uma aventura como no passado.

Trata-se, sim, de uma atividade vital para a economia global, atrelada ao próprio conceito de comércio exterior, que gera riquezas e tida como estratégica para a economia saudável de um país.

Por isso mesmo, exige-se elevado grau de profissionalismo.

O transportador é o beneficiário imediato da operação de transporte, aquele que mais lucra com o transporte de cargas e dele literalmente vive. Logo, é razoável que venha a suportar, sozinho, os prejuízos decorrentes de um dado sinistro, não se falando em avaria grossa, mesmo que, a fim de evitar mal maior, tenha dependido muito.

Afinal, em se tratando de uma obrigação contratual de resultado, aquele que tem o benefício maior, também tem que arcar com eventuais ônus.

Se, no passado, era justa a repartição de prejuízos em casos configuradores de avaria grossa, hoje decerto não o é mais, devendo, portanto, o transportador arcar, sozinho, com todos os prejuízos decorrentes.

Por isso, combatemos os efeitos jurídicos da avaria grossa, não concordando de forma alguma com o rateio de despesas e prejuízos, os quais se revelam extremamente onerosos para os proprietários das cargas.

De qualquer modo, mesmo em se mantendo a avaria grossa como tradicionalmente se encontra, observamos que sua declaração depende, além dos itens já mencionados, de prova técnica em tal sentido, já que não basta por si mesma a simples declaração.

A experiência profissional nos autoriza afirmar que muitos casos de supostas avarias grossas, mediante declarações dos transportadores (armadores) foram desqualificadas pela verdadeira natureza dos fatos, forçando os declarantes ao ressarcimento de todos os prejuízos que causaram por conta de falhas operacionais.

Conceder a uma avaria particular o status de avaria grossa é algo temerário e que não pode ser abraçado de forma alguma, sob pena de injustiça flagrante aos donos de cargas e seus seguradores.

É possível afirmar, com base na legislação vigente, que a avaria grossa, segundo a inteligência do direito brasileiro, só tem guarida e aceitação quando a causa antecedente ao dano voluntariamente causado pelo transportador para salvaguarda de bens maiores não tiver sido, de algum modo, por conduta culposa (ou dolosa), provocada pelo próprio transportador.

Há inegável razões ontológicas e de boa lógica jurídica para tanto, na medida em que não pode um dado benefício legal prejudicar quem foi o causador do dano.

Nesse mesmo sentido, muito aproveita lembrar que o sistema legal brasileiro opera a ideia de reparação civil ampla e integral, disposta como garantia fundamental constitucional, de tal modo que o benefício da avaria grossa e repartição de prejuízos e ônus se revela injusta quando a causa antecedente for provocada pelo próprio beneficiário.

Vale lembrar por fim, que esse mesmo entendimento foi rigorosamente mantido nos artigos do Código de Processo Civil, ora em “vacatio legis”, que passou e passará a dispor sobre os procedimentos e a natureza jurídica da avaria grossa.

Não é ocioso, por fim, afirmar que esse entendimento se encontra praticamente pacificado no acervo jurisprudencial brasileiro, tornando quase letra morta as discussões a respeito.

No mundo ideal, tudo isso bastaria para pôr pá de cal no assunto e fazer imperar a absoluta tranquilidade.

Infelizmente, não vivemos no mundo ideal e o Direito é dialético por natureza e excelência.

Não raro, os sinistros marítimos com interesses de embarcadores, consignatários e seguradores de cargas brasileiros ocorrem em águas internacionais, sob o manto de legislações estrangeiras, sistemas jurídicos diversos e são regulados fora do país.

Assim, os interessados brasileiros, ao menos num primeiro momento, numa fase inicial de tratamento de um determinado sinistro, são obrigados, não raro com alguma truculência comercial, à aceitarem imposições tidas como absurdas aos olhos do sistema legal do Brasil.

Com base em disposições contratuais adesivas dispostos nos anversos dos conhecimentos marítimos, os armadores e/ou transportadores declaram avarias grossas mesmo nos sinistros cujas causas antecedentes foram provocadas por eles mesmos.

E o fazem porque essas cláusulas contratuais (adesivas) remetem ao uso das Regras de York/Antuérpia, convenção internacional da qual o Brasil não foi signatário e que não é válida no sistema legal do país.

Aliás, muito válido afirmar que o Brasil, felizmente, reconhecendo sua condição de país “cargo” não assinou qualquer convenção internacional maritimista, preservando sua soberania e defendendo corretamente seus legítimos interesses. A única convenção que o Brasil assinou, a de Hamburgo, em 1974, não foi ratificada pelo Poder Legislativo, de tal forma que não é parte integrante do seu acervo legal.

Assim, as regras de York/Antuérpia são ilustres desconhecidas do ordenamento jurídico nacional, felizmente.

Mas, em se tratando de uma questão apurada no exterior, impossível ao interessado brasileiro não se deixar submeter, mesmo que à contragosto, às avessas, ao sabor das referidas regras e aceitar a imposição do transportador.

Aceitar é o único meio de resolver eventuais pendências, obter a liberação da carga (quando for o caso) e não sofrer sanções de qualquer ordem e natureza.

Isso não quer dizer que, depois, sendo possível a invocação da jurisdição nacional (tudo, evidentemente dependerá das particularidades do caso concreto), a declaração de avaria grossa não poderá ser questionada.

Não só poderá, como deverá ser questionada, se a causa antecedente tiver sido efetivamente provocada pelo transportador.

Ora, além de tudo o que já exposto sobre a verdadeira natureza jurídica da avaria grossa, ao menos segundo a legislação brasileira, tem-se que uma cláusula abusiva, presente num contrato de adesão, é tradicionalmente rotulada como nula de pleno direito pelo sistema legal brasileiro.

As leis e os órgãos monocráticos e colegiados do Estado-juiz não aceitam as cláusulas abusivas, sejam elas delimitadoras de foros, sejam elas limitativas de responsabilidade, sejam elas tipificadoras de benefícios legais-econômicos incompatíveis com a legislação brasileira, exatamente como as que tratam, nos conhecimentos marítimo, de forma absolutamente unilateral, adesiva, da avaria grossa.

E essa forma de encarar e aplicar o direito ganha ainda mais força e sentido quando a cláusula abusiva faz remissão aos termos de convenção internacional da qual o Brasil não foi signatário, como as tais regras de York/Antuérpia, absolutamente descompassadas com a ordem jurídica do Brasil e, até mesmo, coma realidade fática.

Com efeito, as referidas regras foram elaboradas para a manifesta proteção dos armadores e transportadores marítimo. Há nelas, sem exagero, elementos draconianos, os quais permitem o desequilíbrio de forças entre os transportadores de cargas e os proprietários dessas mesmas cargas, fazendo destes reféns daqueles. Além disso, o cenário da navegação naquele tempo era completamente diferente dos dias atuais. Os riscos eram maiores do que os de hoje, haja vista o desenvolvimento vertiginoso da engenharia, da indústria naval e dos sistemas de informação e de navegação.

Ora, até mesmo com base na jusfilosofia e na teoria tridimensional do Direito do Professor Miguel Reale (Direito é norma, fato e valor), qual o sentido de se aplicar à norma de ontem o mesmo valor diante do fato de hoje. A navegação contemporânea não é isenta de riscos e de perigos, de atos-fatos fortuitos, mas também não é mais uma aventura como no passado, sendo que o rol de riscos se torna menor a cada novo ano e o desenvolvimento exponencial da tecnologia empresta à essa arte precisa.

Aliás, faz muito, mas muito tempo, que o poeta já havia dito que “navegar é preciso, viver não é preciso” e só não entende a beleza dessa frase e a feição matemática da navegação quem não quer ou tem dificuldade em ler e interpretar a poesia e o Direito.

Em sendo assim, o interessado brasileiro, dono de carga ou seu segurador, que num primeiro momento foi premido a aceitar os efeitos jurídicos de uma avaria grossa poderá questionar, com ótima chance de êxito, esses mesmo efeitos no plano judicial brasileiro, afinal o que vale extrajudicialmente e à luz de um sistema jurídico estrangeiro, certamente não vale para o âmbito judicial, segundo o sistema jurídico brasileiro.

Não é exagero algum alegar que a declaração de avaria grossa – fundada no conhecimento marítimo e das regras de York/Antuérpia -, quando a causa antecedente ao dano voluntário não for efetivamente fortuita é ineficaz sob as lentes do Direito brasileiro, além de tudo já exposto, por agredir frontalmente o princípio-regra da boa-fé objetiva, prevista no artigo 422 do Código Comercial.

Também não é exagero algum afirmar que, de algum modo, a declaração de avaria grossa se enquadra nos vícios do consentimento, na medida em que os aceitantes não são de fato e de direito aceitantes, mas vítimas de uma imposição fática, não raro arbitrária, com uma roupagem jurídica sem moldes no Brasil.

Daí a convicção que, em muitos casos, bem dimensionadas as particularidades, a busca da ineficácia e invalidade da declaração de avaria grossa é perfeitamente possível, ensejando a luta pelo melhor Direito e a busca de simetria das relações jurídicas e negociais dos transportes internacionais de cargas.


1 Material didático da Funenseg – Fundação Escola Nacional de Seguros. Glossário de Terminologia Técnica Comercial Marítima. 2ª ed. Rio de Janeiro: 2002, p. 7.

Fonte: Artigo publicado originalmente na revista Opinião.Seg nº 11 - Outubro de 2015 - Páginas 44 a 49.