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A transferência de risco no mercado de (res)seguros

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Lillian Castilho Menini

Advogada, Mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie/SP), Pós-Graduada em Gestão de Negócios Bancários (FIA-FEA/USP) e em Direito Empresarial (PUC/SP), Pós-Graduanda em
Gestão de Resseguro (ENS)
Setembro/2022

O risco é um componente essencial para a humanidade. É através do risco que a humanidade se desenvolve, cria estruturas, aprende com os erros. Quanto mais complexa a sociedade se torna, mais risco corre.

Enquanto não é medido, o risco se torna uma ameaça e gera insegurança nas pessoas; portanto, desenvolver ferramentas que permitam conhecer e controlar, na medida do possível, o risco existente; reduz paulatinamente o universo do medo na sociedade. E é nesse momento que a ciência do (res)seguro surge para apoiar a humanidade no seu crescimento sustentado e controlado, suportando determinadas perdas mediante a transferência controlada do risco.

Assim, o mercado de (res)seguro tem a função de trazer segurança às famílias, proteção do patrimônio, tranquilidade financeira, manter padrão de vida e estabilidade social ao passo que busca, igualmente, distribuir o risco, repor bens, reconstruir projetos, gerando empregos, enfim, cumprir sua função social.

No presente artigo, abordaremos as formas de transferência de risco do mercado, com ênfase no resseguro.

1. Resseguro, sua função primordial.

O resseguro é o instituto de pulverização de risco, por excelência; pois possibilita que um risco local possa ser diluído internacionalmente. ‘Reinsurance is a major financial activity as it allows direct insurance undertakings, by facilitating a wider distribution of risks at worldwide level, to have a higher underwriting capacity to engage in insurance business and provide insurance cover and also to reduce their capital costs; furthermore, reinsurance plays a fundamental role in financial stability, since it is an essential element in ensuring the financial soundness and the stability of direct insurance markets as well as the financial system as a whole, because it involves major financial intermediaries and institutional investors.[1]

Na operação de resseguro, a cedente é a companhia seguradora que emite a apólice de seguros para o cliente segurado. O seguro e o resseguro são dois institutos jurídicos distintos, mas intrinsicamente ligados. Enquanto a companhia seguradora viabiliza a atividade econômica ou o patrimônio/vida do segurado; o ressegurador viabiliza a estabilidade econômica das carteiras das cedentes (companhias seguradoras). Assim, é importante esclarecer que o ressegurador não cobre o mesmo risco da companhia seguradora, mas sim o risco de exposição da cedente, com função de proteger interesses coletivos.

A história conta que o primeiro contrato de resseguro teria surgido em 1370, em Gênova na Itália, vejamos: Giuliano Grillo (‘segurador’) obrigou-se a comprar certas mercadorias de Giovanni Sacco (‘segurado’), caso estas, que partiam do porto de Gênova, não chegassem ou chegassem avariadas no porto d'Écluse, na região de Flandres. Apesar de existir tal compromisso, os genoveses, Goffredo di Benavia e Martino Maruffo (‘resseguradores’), assumiram obrigação similar perante Giuliano Grillo (segurador), caso o acidente ocorresse no trecho da viagem entre Cádiz, na costa atlântica da Espanha, e o porto de destino, situado no Mar do Norte, considerado pelas partes o mais perigoso.

A primeira pessoa jurídica a se dedicar à atividade ressecuritária surgiu em 1842 na Alemanha, denominava-se Companhia de Resseguros de Colônia e era formada por industriais, banqueiros e seguradoras.

O resseguro é um direito consuetudinário, por excelência. E não poderia ser diferente, pois o resseguro é um instituto internacional de pulverização de risco, não cabendo ao Estado ditar suas regras. No resseguro, o costume deve ser a lei para que o sistema funcione em harmonia. Em razão dessa especificidade e aplicação de costumes internacionais, não raro, a arbitragem costuma ser o meio adotado pelo mercado para solução de conflitos. Estima-se que 27 países da Europa possuam leis escritas sobre resseguro.

No Brasil nacionalista, uma medida que pode ter sido vista como importante para proteger o mercado de resseguro (e seguros) da época, mostrou-se, na prática, um atraso no desenvolvimento do mercado brasileiro. Em 1939, o então Presidente Getúlio Vargas editou o Decreto-Lei 1.186 que objetivava dar ao país um órgão ressegurador e manter, no Brasil, o capital dantes exportado para os resseguradores internacionais. Em 1940, o Instituto de Resseguros do Brasil (“IRB”) entrou em funcionamento.

O IRB representou o monopólio do mercado ressegurador brasileiro que durou quase 7 décadas (1939-2007). Durante todo esse período, o IRB assumiu seu papel original de único ressegurador brasileiro (mantendo contato com os resseguradores internacionais por meio da retrocessão[2]); bem como apoiou tecnicamente as seguradoras brasileiras em matéria de resseguro. Esse apoio causou um efeito adverso que vem sendo tratado desde a abertura do mercado em 2008; qual seja: o atraso do desenvolvimento do mercado de (res)seguro no Brasil.

Na exposição de motivos da Lei Complementar 126/2007 nota-se exatamente a expectativa de melhora do mercado, com a sua abertura: “Além de novos investimentos, acreditamos que a abertura do mercado de resseguro contribuirá de forma significativa para o desenvolvimento do setor securitário local e, consequentemente, para o desenvolvimento econômico e social brasileiro. (...) Os consumidores, provavelmente, serão os principais beneficiados, pelas perspectivas na maior oferta de produtos inovadores.”

Importante ressaltar que a Lei Complementar, denominada “Lei do Resseguro” no Brasil, não define regras sobre as operações de resseguro em si; mas define a política de resseguro, retrocessão e sua intermediação, as operações de cosseguro, as contratações de seguro no exterior e as operações em moeda estrangeira do setor securitário.

Na norma, classificam-se os “tipos” de resseguradores que podem operar no mercado nacional: ressegurador local, ressegurador admitido e ressegurador eventual; devendo o primeiro ser sediado no país; o admitido é sediado no exterior e possui escritório de representação no país; já o eventual é igualmente sediado no exterior e não necessita de escritório no Brasil. A Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) é a autarquia brasileira que fiscaliza os resseguradores, conforme normas infralegais editadas pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP); sendo, portanto, a representante do Poder Executivo que fixa o limite máximo que poderá ser cedido anualmente a resseguradores eventuais (art. 8º, § 1º), por exemplo.

Durante a redação do presente trabalho, encontra-se em vigor a Resolução CNSP 168/2007 que trata da atividade de resseguro, retrocessão e sua intermediação; mas também se encontra em consulta pública (nº 09/2022) a minuta da nova resolução que tratará do tema após sua publicação.

Conforme Lei Complementar 126/2007 e Resolução CNSP 168/2007 persiste o dever das cedentes (companhias seguradoras) ofertarem, preferencialmente, ao menos 40% (quarenta por cento) de sua cessão de resseguro a cada contrato automático ou facultativo; sendo que tal oferta preferencial consiste no direito de preferência que possuem os resseguradores locais em relação aos demais resseguradores, para fins de aceitação de contrato de resseguro automático ou facultativo, desde que o ressegurador local aceite a respectiva oferta de resseguro em condições idênticas às ofertadas e/ou aceitas pelo mercado internacional; sob pena do contrato de resseguro ser desconsiderado na hipótese de serem identificadas práticas desleais no cumprimento da oferta equânime por parte da cedente ou ressegurador (artigo 15, §§ da Resolução CNSP 168).

A consulta pública nº 09/2022 revisou os limites de resseguro e retrocessão. Em relação ao resseguro, as cedentes poderão ceder até 90% (noventa por cento) dos prêmios emitidos considerando-se a globalidade das operações por ano civil, devendo apresentar justificativa técnica para o nível de retenção abaixo dos 10%, portanto. Com essa minuta, o órgão fiscalizador deixa claro que a ideia de flexibilização dos limites tem como princípio demonstrar a possibilidade de extinção da oferta preferencial prevista na Lei Complementar 126/2007; o que, juridicamente, demandaria revisão na própria lei complementar.

Por fim, ao falar de resseguro, não podemos deixar de mencionar os instrumentos jurídicos pelos quais esse instituto se perfaz: o contrato automático ou o contrato facultativo de resseguro.

De acordo com a definição normativa, contrato automático é a operação de resseguro através da qual a cedente acorda com ressegurador ou resseguradores a cessão de uma carteira de riscos previamente definidos entre as partes e compreendendo mais de uma apólice ou plano de benefícios, subscritos ao longo de um período pré-determinado em contrato; ao passo que o contrato facultativo é operação de resseguro através da qual o ressegurador ou resseguradores dão cobertura a riscos referentes a uma única apólice ou plano de benefícios ou grupo de apólices ou planos de benefícios já definidos quando da contratação entre as partes.

O ressegurador não responde por obrigações assumidas pela seguradora perante o segurado; exceto no caso de liquidação extrajudicial da cedente; momento em que será chamado a responder pela parte que lhe cabe no risco, jamais pela totalidade.

Outro ponto que vale ressaltar é o fato de que a norma estabelece que nos contratos de resseguro deverão ser incluídas cláusulas determinando a submissão de eventuais disputas à legislação e à jurisdição brasileiras, ressalvados os casos de cláusula de arbitragem, que observarão a legislação em vigor; dispositivo que visa proteger os riscos situados no território nacional.

No mais, as cláusulas dos contratos de resseguro serão livremente estabelecidas entre as partes contratantes devendo, contudo, conter (i) o início e término dos direitos e obrigações de cada parte; (ii) os critérios para o cancelamento; (iii) os riscos cobertos e os riscos excluídos; e (v) o período de cobertura, identificando o início de responsabilidade do ressegurador e o exato momento em que as perdas encontram cobertura no contrato. Reforçando, portanto, a característica contratual, consuetudinária e principiológica do resseguro.

2. Cosseguro, outra forma de transferência de risco.

A Lei Complementar 126/2007 define o cosseguro como a operação de seguro em que 2 (duas) ou mais sociedades seguradoras, com anuência do segurado, distribuem entre si, percentualmente, os riscos de determinada apólice, sem solidariedade entre elas. Portanto, diferentemente do resseguro, no cosseguro é necessária a anuência do segurado na repartição do risco e a cosseguradora líder (como é chamada a seguradora que se relaciona com o segurado) é a companhia responsável por recolher o prêmio do segurado, repassando para a congênere (como é chamada a outra seguradora que participa do risco) a indenização em caso de sinistro, pagando-a diretamente ao segurado.

No cosseguro, temos uma transferência de risco horizontal, vez que o relacionamento ocorre entre duas ou mais seguradoras. Cada uma por sua vez, pode estar protegida por seus respectivos resseguros, o que é bastante comum.

Antes ainda da Lei Complementar, o Decreto Lei 73/1966 já dispunha que as seguradoras deveriam observar nas operações de cosseguro, as disposições do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP.

Assim, foi editada em 2001 a Resolução CNSP 68, que trata das operações de seguros denominadas “cosseguro”.

O ponto importante é o fato de a norma estabelecer claramente que não existe responsabilidade solidária entre as sociedades seguradoras nas operações de cosseguro. Tanto é que na apólice em cosseguro deve constar em seu frontispício o nome das seguradoras participantes e seus respectivos percentuais de responsabilidade máxima assumida.

Na prática, as seguradoras firmam entre si contratos de cosseguro em que fixam as bases de seu relacionamento acerca de determinado risco, tais como prazos para cumprimento de obrigações recíprocas; regulação de sinistro; repasses financeiros.

3. Letra de Risco de Seguro (LRS), nova forma de transferência de risco.

Com a edição da Lei 14.430 de 03 de agosto de 2022, o Brasil passa a ter uma lei que agregada as disposições esparsas sobre securitização e, seguindo a experiência de outros países, normatiza a Letra de Risco de Seguro – LRS.

A LRS pode ser uma alterativa de captação de recursos por parte das Seguradoras brasileiras e uma opção de investimento para investidores qualificados do mercado de capitais.

A Lei 14.430/20222 cria, portanto, um novo título de crédito nominativo, transferível e de livre negociação, representativo de promessa de pagamento em dinheiro, vinculado a riscos de seguros e resseguros. Ou seja, somente a lei tem o poder de criar os títulos de crédito executáveis e na Lei 14.430 está disposta as regras de sua constituição. No caso da LRS, a sua emissão é exclusivamente realizada por uma Sociedade Seguradora de Propósito Específico (SSPE).

A SSPE também é uma sociedade seguradora, sujeita à fiscalização da SUSEP e no que se refere a sua atividade de securitização, deverá ser constituída e fiscalizada de acordo com os normativos editados pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM. A SSPE tem por objetivo exclusivo realizar uma ou mais operações, independentes patrimonialmente, de aceitação de riscos de seguros, previdência complementar, saúde suplementar, resseguro ou retrocessão de uma ou mais contrapartes e seu financiamento por meio de emissão de Letra de Risco de Seguro (LRS), instrumento de dívida vinculada a riscos de seguros e resseguros.

A emissão da LRS pressupõe um contrato de cessão de direitos entre uma SSPE e uma sociedade seguradora ou resseguradora, por exemplo.

A seguradora cedente permanece responsável por se relacionar com o segurado, pagar os sinistros etc.; no caso de contraparte ser uma resseguradora, o relacionamento da resseguradora continua sendo direto com a seguradora. Ou seja, a operação de LRS é uma forma de captação de recursos, não alterando a dinâmica das relações de seguro. Isso porque, emitido o título de crédito chamado LRS, cujo lastro são operações de seguro/resseguro, conforme o caso; a SSPE tem a autorização e estrutura para oferecer no mercado de capitais o título LRS, que será adquirido por investidores qualificados[3]; investidores esses que aportarão capital na carteira da SSPE para fazer jus ao pagamento de eventuais sinistros da carteira.

Onde o investidor que comprou a LRS ganha? Especialmente quando a carteira não sofre com alta sinistralidade. É um investimento de risco, vez que alta sinistralidade corresponderá a um investimento não rentável; por isso somente investidor qualificado pode comprar a LRS no mercado de capitais já que poderá arcar com perdas no investimento.

Um fator importante que caracteriza as operações de securitização e que não poderia ser diferente no caso das LRS: a independência patrimonial. Cada operação de aceitação de riscos de seguros terá independência patrimonial em relação às demais operações efetuadas pela mesma SSPE e à própria SSPE.

As obrigações representadas pela LRS se tornarão extintas pela inexistência de riscos a decorrer, sinistros a pagar e recursos a serem devolvidos aos seus titulares.

A SSPE é, portanto, uma nova fonte de captação e não vai operacionalizar os processos de sinistro ou subscrição de riscos. Havendo sinistro, por exemplo, a seguradora chama a SSPE e paga a indenização ao segurado, assemelhando-se, portanto, nessa medida, a proteção oferecida por um resseguro, no caso de apólices de seguro; ou de uma retrocessionária, no caso de operações de resseguro.

A Lei 14.430/2022 ainda precisa de regulamentação/atualização de normativos por parte da CVM e CNSP/SUSEP[4] para ser operacionalizada; mas em cenários críticos de captação de recursos, acredita-se que os reguladores devem se movimentar para emitir resoluções/circulares a respeito, permitido que os riscos do mercado de (res)seguros possam ser transferidos a outro mercado, o de capitais; e com isso pulverizar ainda mais os eventos adversos enfrentados por uma sociedade em constante evolução e amadurecimento.

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[1] DIRECTIVE 2005/68/EC OF THE EUROPEAN PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL of 16 November 2005 on reinsurance and amending Council Directives 73/239/EEC, 92/49/EEC as well as Directives 98/78/EC and 2002/83/EC. O resseguro é atividade financeira importante, uma vez que permite que as empresas de seguro direto, ao facilitarem a distribuição mais vasta de riscos no nível mundial, tenham maior capacidade para subscreverem contratos de seguros e de fornecerem coberturas através do seguro, bem como para reduzirem os seus custos de capital; além disso, o resseguro desempenha papel fundamental na estabilidade financeira, uma vez que constitui elemento essencial para garantir a solidez financeira e a estabilidade dos mercados de seguro direto, bem como do sistema financeiro no seu conjunto, dado implicar importantes intermediários financeiros e investidores institucionais.
[2] Art. 2º, alínea IX da Resolução CNSP 168: Retrocessão: operação de transferência de riscos de resseguro de resseguradores, com vistas a sua própria proteção, para resseguradores ou para sociedades seguradoras locais, através de contratos automáticos ou facultativos.
[3] São considerados investidor qualificado :i)instituições financeiras; ii)companhias seguradoras e sociedades de capitalização; iii)entidades abertas e fechadas de previdência complementar; iv) pessoas físicas ou jurídicas que possuam investimentos financeiros em valor superior a R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) e que, adicionalmente, atestem por escrito sua condição de investidor qualificado mediante termo próprio, de acordo com o anexo i; v)fundos de investimento destinados exclusivamente a investidores qualificados; e vi)administradores de carteira e consultores de valores mobiliários autorizados pela CVM, em relação a seus recursos próprios. Disponível em https://www.investidor.gov.br/glossario/i/investidor_qualificado.html?pager.offset=5&busca=&dir=/glossario/i/&letra=I.
[4] Em 29/09/2022, o Conselho Diretor da Superintendência de Seguros Privados - Susep decidiu colocar em consulta pública minuta de Resolução CNSP que dispõe sobre a emissão de Letra de Risco de Seguro por meio de Sociedade Seguradora de Propósito Específico (Consulta Pública nº 12/2022/SUSEP).
 
03.10.2022