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A renovação automática e seus contornos à luz da Lei do Contrato de Seguro

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Por Thiago Junqueira[1]

thiago junqueira

1. Introdução

A Lei do Contrato de Seguro (Lei nº 15.040/2024, ou simplesmente “LCS”) reconfigura o regime de continuidade dos contratos de seguro no Brasil. Em substituição à lógica restritiva do art. 774 do Código Civil de 2002 (CC), que limitava a “recondução tácita” a uma única ocorrência, a nova lei adota um modelo pautado na transparência, na antecedência e na autonomia tanto do segurado quanto da seguradora para promover ou rejeitar a renovação automática do vínculo contratual.

A mudança desloca o eixo do debate jurídico: não se trata mais de quantas vezes o contrato pode ser renovado automaticamente – isto é, sem nova manifestação expressa de vontade das partes –, mas de como a renovação deve, ou não, ocorrer para ser considerada legítima.

Este breve artigo examina a transição normativa, seus fundamentos aparentes e efeitos sistemáticos, sustentando que o novo regime tende a equilibrar estabilidade e liberdade contratual.

2. O art. 774 do CC e a lógica da antiperpetuidade

O art. 774, sem equivalente no Código de 1916, foi inserido na Seção “Disposições Gerais” do capítulo “Do Seguro” do Código Civil de 2002, com o objetivo de evitar a perpetuação automática de contratos. O dispositivo determinava que a “recondução tácita do contrato pelo mesmo prazo, mediante expressa cláusula contratual, não poderá operar mais de uma vez”. Essa limitação refletia a preocupação do legislador com a renovação indefinida dos vínculos securitários, reputada potencialmente lesiva ao segurado. A regra possuía nítido viés protetivo, inspirada em uma concepção de mercado marcada pela anualidade das apólices.

Passando ao largo das minúcias interpretativas do dispositivo – em especial sua contradição terminológica, ao prever uma “recondução tácita” condicionada à existência de “cláusula expressa” –,[2] importa destacar que o espírito da norma era claro: impedir que a inércia substituísse a manifestação de vontade e assegurar revisões periódicas das condições contratuais e dos riscos.

A regulação infralegal seguiu a mesma orientação do art. 774 do Código Civil, substituindo, contudo, a expressão “recondução tácita” por “renovação automática”. A título ilustrativo, a Circular Susep nº 667/2022, ao disciplinar as coberturas de risco em seguros de pessoas, estabelece:

Art. 30. “Deverão ser especificados os procedimentos para renovação da apólice, quando for o caso.

§ 1º A renovação automática só poderá ser feita uma única vez e pelo mesmo prazo, devendo as renovações posteriores serem feitas, obrigatoriamente, de forma expressa.

§ 2º Quando prevista renovação da apólice, caso a sociedade seguradora não tenha interesse em efetuar esta renovação, deverá comunicar aos segurados e, no caso de apólice coletiva, ao estipulante mediante aviso prévio de, no mínimo, trinta dias que antecedam o final de vigência da apólice”.[3] (Destacou-se).

A doutrina, por sua vez, ao examinar o tema, entendeu que a regra possuía natureza de ordem pública, insuscetível de derrogação contratual:

“Em suma, não são admitidas, desde a entrada em vigor do Código Civil de 2002, renovações sucessivas e automáticas do contrato por meio de cláusula contratual que assim o preveja. A norma é considerada de ordem pública, não podendo ser contrariada pelo instrumento, sob pena de nulidade absoluta”.[4]

Com a entrada em vigor da LCS, contudo, o cenário se altera. O novo diploma não reproduz o art. 774, e a omissão parece deliberada: o legislador optou por privilegiar a continuidade da cobertura e a previsibilidade contratual, harmonizando-as com os princípios da boa-fé e do dever de informação.

3. A virada da Lei do Contrato de Seguro: do limite quantitativo ao dever informacional

A LCS substitui a limitação numérica da recondução automática por um modelo que pode ser qualificado como de “continuidade informada”. O art. 52 estatui que o contrato se presume celebrado por um ano, salvo se outro prazo decorrer da “natureza, do interesse, do risco ou da vontade das partes”. Em seguida, o art. 53 estabelece o novo regime das renovações automáticas:

Art. 53. “Nos seguros com previsão de renovação automática, a seguradora deverá, em até 30 (trinta) dias antes de seu término, cientificar o contratante de sua decisão de não renovar ou das eventuais modificações que pretenda fazer para a renovação.

§ 1º Se a seguradora for omissa, o contrato será automaticamente renovado.

§ 2º O segurado poderá recusar o novo contrato a qualquer tempo antes do início de sua vigência, comunicando-o à seguradora ou, caso não tenha promovido averbações de riscos, simplesmente deixando de efetuar o pagamento da única ou da primeira parcela do prêmio”.

O dispositivo não estabelece qualquer limitação quanto ao número de renovações automáticas, deslocando o foco da discussão para o modo como elas devem ocorrer. Do lado da seguradora, a omissão na comunicação de não renovação acarreta a renovação automática do contrato; se houver intenção de modificar as condições para a nova vigência, deverá igualmente o segurador comunicar o contratante ou seu corretor de seguros,[5] observando o prazo legal. Do lado do segurado, a liberdade de recusa é plena até o início da nova vigência, podendo ser exercida, inclusive, pelo simples não pagamento do prêmio, caso não tenha feito averbações de riscos. O resultado é um regime de deveres assimétricos, porém complementares: à seguradora impõe-se o dever de agir caso não queira renovar ou condicione a renovação a novos termos; ao segurado, reconhece-se o direito de permanecer inerte.

A continuidade informada não se confunde com catividade opaca. Ao exigir comunicação prévia em caso de alterações do status quo, a lei estimula escolhas racionais, inclusive a migração para outras oportunidades quando conveniente. Ao mesmo tempo, considera a ferramenta de consulta a apólices de seguros disponibilizada pela Superintendência de Seguros Privados[6] e resguarda a estabilidade atuarial e operacional de carteiras massificadas, nas quais a renovação sem lacunas é salutar para a efetividade do seguro como instrumento de gestão de riscos.

Nos seguros de grandes riscos, em que há maior simetria negocial e presença técnica intensiva, a renovação automática é menos relevante; a prática usual é a renegociação, inclusive com prazos plurianuais quando a natureza do risco o recomenda. A LCS, portanto, mantém flexibilidade suficiente para acomodar diferentes segmentos do mercado securitário.

Nesse pano de fundo, ressalte-se que a renovação automática – e todo o procedimento previsto no art. 53 – não constitui regra geral aplicável a todas as apólices. A LCS não impõe sua adoção, limitando-se a disciplinar seus efeitos quando prevista contratualmente essa forma de renovação. Cabe à seguradora avaliar a conveniência e a adequação dessa cláusula, conforme o tipo de seguro, o perfil do risco e a estrutura da carteira. Em seguros massificados, como os de vida individual, residencial ou vinculados a cartões de crédito, a renovação automática pode ser conveniente, desde que observadas as disposições da LCS e haja ciência do segurado no momento da contratação inicial.

4. Tutela reforçada nos seguros individuais sobre a vida e a integridade física

A LCS introduz uma salvaguarda específica para os seguros individuais sobre a vida e a integridade física. O seu art. 124 dispõe que, após dez anos de renovações automáticas sucessivas, a recusa de renovação pela seguradora – salvo se esta encerrar suas operações no ramo ou na modalidade – deverá ser precedida de comunicação ao segurado com antecedência mínima de noventa dias e acompanhada da oferta de outro seguro que contenha garantia similar e preços atuarialmente repactuados, vedadas carências e exclusões por fatos preexistentes.

A norma, alinhada em sua essência com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o seguro de vida individual,[7] busca mitigar os efeitos potencialmente excludentes em mercados nos quais, por razões etárias ou clínicas, a substituição por produto equivalente é custosa ou inviável para o segurado. Trata-se de um mecanismo protetivo voltado a relações individuais duradouras, nas quais a continuidade da cobertura possui acentuado caráter social.

Em contraste, nos seguros coletivos – frequentemente estruturados no regime de repartição simples –,[8] a regra não se aplica sob nenhuma hipótese.[9] Nesses casos, prevalece, inclusive, a orientação da 2ª Seção do STJ, segundo a qual é desnecessária a comprovação de desequilíbrio atuarial-financeiro para a não renovação, configurando-se direito potestativo da seguradora – e do próprio segurado – optar por não renovar o contrato.[10]

Cumpre reforçar, ainda, que o art. 124, ao admitir expressamente a possibilidade de renovações sucessivas e automáticas por período superior a dez anos, afasta-se do teor do art. 30, § 1º, da Circular Susep nº 667/2022, que limitava a renovação automática a uma única vez e pelo mesmo prazo. A LCS, ao estabelecer disciplina diversa, revela opção legislativa por um modelo de continuidade, voltado à preservação da proteção securitária e à estabilidade contratual, em substituição ao regime de limitação quantitativa anteriormente vigente.

5. Conclusão

O deslocamento da tutela – do limite legal à “recondução automática” para o regime de deveres informacionais aplicável nos casos de alteração das bases contratuais ou de ausência de renovação automática – mostra-se coerente com a realidade de déficit de proteção securitária no País e com a natureza relacional do contrato de seguro contemporâneo.

A um só tempo, a solução preserva a possibilidade de renovações sucessivas quando desejáveis, reduz o risco de descontinuidade por falhas de comunicação e mantém o poder de escolha do segurado, que pode manifestar sua recusa antes do início da nova vigência ou simplesmente deixar de efetuar o pagamento da primeira parcela do prêmio.

Em contrapartida, impõe às seguradoras maiores investimentos em governança contratual, com cláusulas redigidas de forma clara, cronogramas internos bem definidos, trilhas formais de comunicação e mecanismos que comprovem o envio tempestivo das notificações de ausência de interesse na renovação – seja nos mesmos termos, seja em condições distintas.

Com efeito, a superação do art. 774 do Código Civil não representa, necessariamente, uma desproteção ao segurado, mas sim uma mudança de paradigma. O sistema passa a condicionar a legitimidade da continuidade contratual ao cumprimento de deveres de conduta, com ênfase na transparência, na antecedência e na possibilidade efetiva de recusa. A tutela específica conferida aos contratos individuais de vida e de integridade física de longa duração densifica a boa-fé e previne cancelamentos abruptos.

Sob a perspectiva normativa e de política legislativa, a Lei nº 15.040/2024 oferece uma resposta alinhada com a dinâmica contemporânea do setor, ao conferir previsibilidade, evitar vácuos de cobertura e preservar a liberdade de escolha do segurado.

[1] Thiago Junqueira é Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Sócio-fundador do escritório Junqueira & Gelbecke Advogados, é Professor de Direito do Seguro e Resseguro na FGV e Professor convidado da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros. Atualmente, exerce as funções de Diretor da AIDA Brasil e de Diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil. Contato: thiago@junqueiragelbecke.adv.br.

[2] A redação do artigo sempre foi considerada problemática. Sobre o tema, fazendo alusão às diferenças entre “renovação”, “recondução” e “prorrogação” do contrato: TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B.; PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de Seguro de acordo com o Código Civil Brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Roncarati, 2016, p. 156; e POLIDO, Walter. Comentários ao art. 774 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Orgs.). Direito dos Seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023, pp. 327 e ss.

[3] No mesmo sentido, confira-se o tratamento dado pela Circular Susep nº 621/2021 (que dispõe sobre os seguros de danos): Art. 26. “Deverão ser especificados os procedimentos para renovação do seguro, quando for o caso. § 1º A renovação automática do seguro só poderá ser feita uma única vez e pelo mesmo prazo, devendo as renovações posteriores serem feitas, obrigatoriamente, de forma expressa. § 2º Caso a sociedade seguradora não tenha interesse em renovar a apólice, deverá comunicar aos segurados e, no caso de apólice coletiva, ao estipulante mediante aviso prévio de, no mínimo, trinta dias que antecedam o final de vigência da apólice, quando aplicável. § 3º No caso de não renovação da apólice coletiva, as coberturas do certificado individual permanecerão em vigor pelo período correspondente aos prêmios já pagos”. (Destacou-se).

[4] TARTUCE, Flávio. Comentário ao art. 774. In: SCHREIBER, Anderson et al. (coord.). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 511.

[5] Sobre o tema, cf. o art. 1º, parágrafo único, incisos III a VI, da Lei nº 4.594/1964, com redação dada pela Lei nº 14.430/2022, que define o corretor de seguros como o intermediário legalmente autorizado a angariar e promover contratos entre seguradoras e segurados, atribuindo-lhe as funções de recomendação da modalidade de seguro e da seguradora, bem como de assistência ao segurado durante a execução e a vigência do contrato, na renovação e na preservação da garantia de seu interesse. Veja-se também o art. 39 da LCS, que impõe ao corretor o dever de entregar, em até cinco dias úteis, os documentos e dados que lhe forem confiados, devendo fazê-lo em prazo hábil sempre que houver risco de perecimento de direito.

[6] O segurado pode, além de verificar a cobrança do prêmio, consultar de forma simples o Sistema de Consulta de Seguros, disponibilizado pela Susep em novembro de 2023, que permite identificar as apólices atualmente contratadas junto a seguradoras no Brasil. A ferramenta está disponível em: https://www2.susep.gov.br/safe/apolices/app/.

[7 Por exemplo: STJ, AgInt no REsp 2.015.204/SP, 4ª T., Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 12.08.2025, onde se lê: “1. A recusa da renovação de seguro de vida individual, após longo período de renovações automáticas, é abusiva e ofende os princípios da boa-fé objetiva e da confiança”.

[8] “Como assinalado, a temporariedade do pacto constitui elemento intrínseco ao contrato de seguro de vida em grupo. No contrato entabulado entre as partes, encontra-se inserta a cláusula contratual que expressamente viabiliza, por ambas as partes, a possibilidade de não renovar a apólice de seguro contratada. (...) Na verdade, justamente sob o enfoque do regime financeiro (repartição simples x capitalização) que os seguros de vida deverão observar é que reside a necessidade de se conferir tratamento distinto para o seguro de vida em grupo daquele dispensado aos seguros individuais que podem, eventualmente, ser vitalício”. (STJ, REsp 880.605/RN, 2ª Seção, Rel. p/acórdão Min. Massami Uyeda, j. 13/06/2012).

[9] Nesse sentido, destaca-se o relatório do relator do PL nº 29/2017 – que deu origem à Lei do Contrato de Seguro – no Senado Federal, Senador Jader Barbalho: “O art. 122 [124 na versão final da lei] concretiza regra geral relacionada a relações contratuais duradouras. Apenas quando três requisitos estão satisfeitos – tipo de seguro (individual sobre a vida e integridade física), forma de renovação (sucessiva e automática) e tempo de renovação (mais de dez anos) – deve a atividade seguradora submeter-se ao ditame do artigo. Logo, não se trata de restrição excessiva, mas de parâmetros objetivos que aclaram a eficácia das regras gerais decorrentes da boa-fé, no âmbito do contrato de seguro”. O relatório está disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9509502&ts=1741352876033&rendition_principal=S&disposition=inline.

[10] “1 - A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp. 880.605/RN (DJe 17/9/2012), firmou o entendimento de não ser abusiva a cláusula contratual que prevê a possibilidade de não renovação automática do seguro de vida em grupo por qualquer dos contratantes, desde que haja prévia notificação da outra parte. 2 - À exceção dos contratos de seguro de vida individuais, contratados em caráter vitalício ou plurianual, nos quais há a formação de reserva matemática de benefícios a conceder, as demais modalidades são geridas sob o regime financeiro de repartição simples, de modo que os prêmios arrecadados do grupo de segurados ao longo do período de vigência do contrato destinam-se ao pagamento dos sinistros ocorridos naquele período. Dessa forma, não há que se falar em reserva matemática vinculada a cada participante e, portanto, em direito à renovação da apólice sem a concordância da seguradora, tampouco à restituição dos prêmios pagos em contraprestação à cobertura do risco no período delimitado no contrato. 3 - A cláusula de não renovação do seguro de vida, quando faculdade conferida a ambas as partes do contrato, mediante prévia notificação, independe de comprovação do desequilíbrio atuarial-financeiro, constituindo verdadeiro direito potestativo. 4 - Recurso especial a que se dá provimento”. (STJ, REsp 1.569.627/RS, 2ª Seção, Min. Rel. Maria Isabel Gallotti, j. 22/02/2018).

(27.10.2025)