Por Debora Schalch*
Após a publicação da nova Lei de Seguros em dezembro último, uma das grandes preocupações do setor, não apenas de seguros, mas de todos os demais setores da economia que demandam a proteção securitária para suas atividades e projetos, é como os órgãos regulatórios (CNSP e a Susep) vão lidar com os chamados seguros para cobertura de grandes riscos.
Isto porque a nova Lei de Seguros descuidou dos grandes riscos, deixando de trazer disposições para tratar desta modalidade de contrato de seguro, a exemplo do que já ocorre em legislações de vários países da Europa e da América Latina, que distinguem os riscos massificados dos grandes riscos.
É sabido que o Brasil não consegue sustentar um crescimento anual acima de 5% desde 2010, quando o Produto Interno Bruto (PIB) alcançou um aumento de 7,5%. Para que o país possa, consistentemente, apresentar bons números, torna-se fundamental a construção de uma base sólida para o desenvolvimento o que, indubitavelmente, depende de grandes investimentos em projetos de infraestrutura e de um mercado de seguros preparado e capaz de oferecer garantias para os riscos envolvidos nesses projetos.
Apesar da relevância do tema para o desenvolvimento e para a economia nacional, a nova legislação, que entrará em vigor em dezembro, não distingue os riscos massificados dos grandes riscos, aplicando regras protecionistas típicas de uma relação de consumo a relações negociais entre grandes empresas, governo e seguradoras, retirando das partes a prerrogativa de negociarem as regras contratuais de acordo com as necessidades específicas de cada projeto.
As peculiaridades técnicas e jurídicas dos grandes projetos, especialmente os de infraestrutura, demandam diálogo e negociação, de forma a possibilitar uma análise criteriosa dos riscos, mecanismos de gestão, mitigação e soluções para as hipóteses de sinistro.
Na contramão, contudo, a nova lei de seguros estabelece prazos para regulação e liquidação de sinistros claramente incompatíveis com a complexidade que envolve as apurações de causas e valores nos eventos de grandes obras, o que pode conduzir a decisões precipitadas e sem a necessária segurança para as partes, com o consequente aumento na judicialização entre seguradoras, segurados e tomadores de seguro.
Além do aumento da judicialização, a nova lei de seguros poderá impactar negativamente o seguro garantia com cláusula de retomada, previsto na atual lei de licitações e que faz dessa modalidade de seguro um forte aliado no combate à paralisação de obras públicas.
A paralisação de uma obra pública demanda uma série de análises e providências para que possa ser retomada e a expectativa é de que com a maior participação das seguradoras passem a contar com o fôlego técnico e financeiro necessários para o prosseguimento desses projetos. Contudo, a massificação dos grandes riscos, com clausulados padronizados, prazos e penalidades severas para as seguradoras, poderá reduzir o interesse das seguradoras e resseguradoras em garantir esses projetos.
Atualmente, os contratos de seguros de danos considerados de grandes riscos são regulamentados pela Resolução CNSP nº 407/2021, de acordo com a natureza do ramo de seguro e com critérios econômico-financeiros do segurado e do tomador do seguro.
Esse ato normativo permite liberdade negocial ampla e mais eficiente, especialmente nos contratos entre empresas com alta capacidade técnica e econômica, como ocorre nos projetos considerados de grandes riscos, dentre os quais se incluem os de infraestrutura tão necessários ao país.
Contudo, a Resolução 407/21 está sendo questionada através de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7074), que, se reconhecida, poderá retirar do país o último recurso para que os grandes riscos tenham um tratamento diferenciado e adequado ao momento e às necessidades de desenvolvimento estrutural e econômico nacional.
Com relação à ADI, é importante observar que em grandes riscos as partes possuem equivalência técnica e econômica, não se estabelecendo uma relação de consumo que deva ser protegida pelo Estado, como, de forma contrária à melhor doutrina e jurisprudência nacional, defendem os autores da Ação.
O setor de seguros tem muito a crescer e a agregar ao país que, mesmo sendo a nona maior economia do mundo, encontra-se na 18ª posição quando o assunto é a participação dos seguros no PIB. A participação do setor representa apenas 6% da soma de todos os bens e serviços finais, abaixo da média de 10% observada nos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Em um país onde mais da metade das obras públicas contratadas com recursos federais estão paralisadas, fica evidente que o problema não está apenas na falta de investimento, mas sim em entraves estruturais, e a ausência de instrumentos de mitigação de risco adequados é um deles. Segundo levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), são 11.944 construções paradas, ou seja, 52% do total.
As consequências são sentidas de forma mais aguda nas áreas de saúde e educação. Juntas, elas concentram 8.674 empreendimentos sem perspectiva de conclusão, o que representa 72,6% do total. Escolas, hospitais e unidades básicas de saúde transformadas em esqueletos urbanos, consumindo recursos públicos sem entregar absolutamente nada à população.
Ainda segundo o TCU, os investimentos federais em obras nas principais cidades brasileiras apresentaram um aumento entre 2020 e 2024: de R$ 76 bilhões para R$ 87,6 bilhões. Esse crescimento contrasta com o crescimento no percentual de obras paralisadas (era de 29% em 2020). A explicação, no entanto, é simples: cerca de R$ 9 bilhões em recursos já foram gastos com a paralisação e mais de R$ 20 bilhões serão necessários para a efetiva conclusão dos projetos.
Por isso, a previsão legal de que as apólices de seguro garantia podem garantir até 30% do valor da obra é essencial, passando as seguradoras a estabelecer uma relação que transcende a de meras provedoras de proteção financeira para se tornarem verdadeiras parceiras do projeto. Ao internalizar uma fatia considerável do risco, passam a ter um incentivo adicional para monitorar de perto o andamento das obras e a solidez dos empreendimentos.
Assim, uma dose extra de segurança é injetada no ambiente de investimentos em infraestrutura e grandes projetos no Brasil. A presença de um par
ceiro financeiro robusto e com expertise na avaliação de riscos complexos tende a mitigar as preocupações dos investidores, tornando o cenário mais atrativo e confiável. Mais do que proteção contra perdas financeiras inesperadas, a presença das seguradoras pode catalisar o desenvolvimento de projetos de grande escala, impulsionando o crescimento econômico e a geração de empregos no país.
De acordo com a CNSEG (Confederação Nacional das Seguradoras), cerca de R$ 2 bilhões em contratos de obras públicas já preveem a contratação de seguros com cláusula de retomada, Estados como Mato Grosso, Pernambuco e São Paulo saíram na frente, adotando a exigência em licitações locais.
No entanto, a adoção pulverizada pode gerar assimetrias e insegurança jurídica — o que, mais uma vez, reforça o papel central da Susep nesse processo. A expectativa é de que o país possa contar com um marco regulatório moderno e que permita a expansão do seguro em todo o seu potencial social e econômico.
Enquanto isso não acontece, as seguradoras e resseguradoras não se sentem confortáveis em participar dos editais. O risco é alto, a margem de negociaçao é pequena e o cenário regulatório é ainda incerto.
A adoção de boas práticas é fundamental para que o Brasil se torne um mercado sólido, previsível e atrativo para investidores. A modernização do seguro-garantia e o fortalecimento das apólices com cláusula de retomada tem a capacidade de impactar diretamente a economia, a gestão pública e, principalmente, a qualidade de vida da população. Afinal, obras paralisadas significam escolas fechadas, hospitais inacabados e estradas intransitáveis.
Parte desse caminho já está pavimentado. A Susep, agora, tem a chance de não apenas cumprir sua missão institucional, mas de agir com celeridade, técnica e diálogo para beneficiar o setor de seguros, a sociedade e o país.
*Debora Schalch, advogada, é especialista em Direito Securitário e sócia-fundadora do Schalch Sociedade de Advogados (SSA). Foi Presidente da Comissão de Direito Securitário da OAB/SP e atuou como Assessora da Superintendência Jurídica da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo em 1999. Entre 1999 e 2002, foi Presidente da Comissão Permanente de Licitações da mesma companhia.
(20.08.2025)