A embriaguez do motorista como agravamento risco no seguro de RC transportador – Alguns apontamentos


Por Thiago Leone Molena (*)
Há uma questão prática interessante no seguro RCTR-C quanto ao agravamento do risco: a embriaguez do motorista do transportador segurado configura agravamento do risco causando a perda do direito a cobertura contratada?
Agravar o risco é aumentar real e consideravelmente a probabilidade da ocorrência do sinistro e/ou da severidade do dano dele decorrente.
Não é a simples modificação no estado natural e normal de evolução, utilização e/ou deterioração do risco, mas é circunstância fática intencional capaz de influir na ocorrência do evento e abalar o equilíbrio contratual [1], que precisa ser concebido a partir da concepção moderna da comutatividade que está na reciprocidade e equivalência da obrigação de garantia do segurador e do pagamento do prêmio pelo segurado (CC, art. 757).[2]
Ernesto Tzirulnik, Flávio Cavalcanti e Ayrton Pimentel apontam com propriedade que “agravar o risco equivale a aumentar de forma relevante e duradoura a probabilidade de ocorrência da lesão ao interesse garantido, ou a severidade da lesão” [3].
Via de regra, o agravamento é um ato personalíssimo do segurado e não de terceiro. Contudo é inegável que, em face da alta complexidade das relações negociais pós-modernas, possam existir situações que o terceiro (motorista, funcionário) atue diretamente sobre o risco exercendo os direitos e deveres próprios do segurado (transportador) e, por isso, deve ser a ele equiparado juridicamente.
O art. 768 do Código Civil dispõe que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”. Literalmente, o sujeito da frase é o próprio segurado capaz de executar o verbo “agravar”. Parece não ser razoável a interpretação que vê a existência de um sujeito indeterminado na redação do artigo, o que levaria a ampliação generalizada dos legitimados para a concretização do verbo “agravar”.
O STJ segue a disposição literal na 3ª e 4ª Turmas:
“Consoante o art. 768 do Código Civil, a perda do direito à garantia ocorrerá se o segurado, intencionalmente, aumentar o risco objeto do contrato. Logo, somente uma conduta imputada diretamente ao próprio segurado e que, por culpa ou dolo, agrave o risco contratado dá azo à perda da indenização securitária.” [4] (grifo nosso).
“A culpa exclusiva de terceiro na ocorrência de acidente de trânsito, por dirigir embriagado, não é causa de perda do direito ao seguro, por não configurar agravamento do risco provocado pelo segurado. Precedentes. Agravo não provido.” [5] (grifo nosso).
O Tribunal de São Paulo também se posiciona:
“Perda do direito à indenização por agravamento do risco deve decorrer de ato doloso do segurado, e não de terceiro. Empréstimo do veículo a terceiro que se embriaga não corresponde a agravamento intencional do risco praticado pelo próprio segurado, e por conseguinte não afasta o direito ao recebimento da indenização securitária. Inteligência do art. 768 do Código Civil. Jurisprudência consolidada do C. STJ. Reforma da r. Sentença. RECURSO DA AUTORA PROVIDO.” [6]
O artigo 768 é norma cogente de exclusão de direito do segurado e, por isso, não admite interpretação extensiva e/ou aplicação analógica, sendo imprescindível a relação direta entre a conduta do segurado e a concretização do sinistro, a prova concreta da materialidade da conduta agravante e de quem a praticou.
A Ministra Nancy Andrighi do STJ, no REsp n. 1.412.816/SC, pontua:
“O agravamento intencional do risco, por ser excludente do dever de indenizar do segurador, deve ser interpretado restritivamente, notadamente em face da presunção de que as partes comportam-se de boa-fé nos negócios jurídicos por elas celebrados. Por essa razão, entende-se que o agravamento do risco exige prova concreta de que o segurado contribuiu para sua consumação.” [7]
Pela função social, a garantia securitária visa proteger o legítimo interesse segurado justamente contra riscos predeterminados, que englobam principalmente atos de terceiros, independentemente, se a ele está vinculado ou não (CC, art. 757). Este, no entanto, é o fundamento jurídico (a razão jurídica de existir) do direito de sub-rogação do artigo 786 do CC: “paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao seguradora contra o autor do dano.”
A questão central, contudo, é conhecer e demonstrar se o transportador segurado, na observância da mais estrita boa-fé (CC, art. 765) e seus deveres conexos (lealdade, cooperação, ajuda mútua), praticou todas as medidas necessárias e as cautelas exigidas para bem proteger, vigiar e fiscalizar a manutenção do status inicial do risco segurado (culpa in vigilando) e se bem elegeu (contratou, treinou, escolheu) o motorista responsável pela condução do transporte (culpa in elegendo).
A “culpa in elegendo” é aquela que “(...) advém da má escolha daquele a quem se confia a prática de um ato ou o adimplemento de uma obrigação. Resulta da falta de cuidado que se deve ter por ocasião do cometimento de certo ato e outra pessoa. Trata-se da culpa em eleger sem a devida prudência”, segundo a Maria Helena Diniz. [8]
Na linguagem do Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, da 3ª Turma do STJ, “o segurado deve ser portar como se não houvesse seguro em relação ao interesse segurado (princípio do absenteísmo), isto é, deve abster-se de tudo que possa incrementar, de forma desarrazoada, o risco contratual, sobretudo se confiar o automóvel a outrem, sob pena de haver, no Direito Securitário, salvo-conduto para terceiros que queiram dirigir embriagados, o que feriria, como visto, a função social do contrato de seguro, por estimular o comportamento danoso à sociedade.” [9]
A embriaguez, por si só, não é causa de exclusão de cobertura securitária por configuração de agravamento de risco, conforme entendimento pacificado do STJ, sendo exigido que ela seja provada e que tenha relação direta com a ocorrência do sinistro:
“A embriaguez do segurado não é causa, por si só, para configurar o agravamento do risco e afastar da seguradora a obrigação de pagar o capital segurado no caso de acidente. Precedentes.” [10]
Pela responsabilidade civil geral, o transportador segurado será responsável objetivamente pelo dano provocado pelo seu motorista empregado a terceiros, inclusive, ao proprietário da carga transportada, conforme inc. III, do art. 932 do Código Civil, tendo direito de regresso em face do empregado causador do dano, conforme artigo 934 do Código Civil. [11]. Portanto, não há qualquer impedimento legal para que o segurador sub-rogue nos direitos do transportador segurado em face de seu empregado causador deliberado do agravamento do risco e por consequência do dano indenizado.
Em suma, a embriaguez do motorista poderá ser considerada causa de agravamento do risco segurado na apólice de RCTR-C e resultar na perda do direito do transportador à cobertura securitária i) se a embriaguez foi causa direta e preponderante para a ocorrência do sinistro e/ou aumento do prejuízo; ii) se o transportador segurado não provar que atuou com diligência para bem fiscalizar, proteger e manter inalterado o status do risco segurado, ou seja, descaracterizando os elementos da culpa in vigilando; iii) se o transportador segurado não provar que tomou todas cautelas para bem eleger o funcionário conhecendo e precavendo-se, por exemplo, dos seus vícios de bebidas, promovendo os cursos de capacitação para adequado transporte da carga, capacitação técnica quanto a aplicação do seguro, formando o histórico da atuação daquele funcionário em específico, ou seja, descaracterizando os elementos da culpa in elegendo; iv) se houver qualquer prova de lesão aos princípios da boa-fé objetiva, deveres conexos e da função social do seguro; a regra magna é que o artigo 768 do Código Civil é indissociável da cláusula geral da boa-fé do artigo 765: “o segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”.
Neste contexto sobressai a importância prática e jurídica de uma boa regulação de sinistro visando trazer a público todos os contornos e detalhes do evento, todas as características pretéritas do evento e de todos os sujeitos. Não parece ser razoável que um pontual deslize de um funcionário bem eleito, bem treinado, preparado, bem escolhido e de um risco bem vigiado possa resultar na perda do direito securitário do transportador por que este "pontual deslize" é, sem dúvida, risco intrínseco ao legítimo interesse segurado por decorrer da própria natureza da sua atividade empresarial.
[1] STJ-3ªTurma, REsp 1.584.477/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Dje. 05.05.2017, voto vencido d Ministra Nancy Andrighi: “(...) o aumento do risco deve ser avaliado na hipótese concreta a julgamento, competindo ao juiz examinar se a conduta do segurado efetivamente influiu na verificação do sinistro e, por outro lado, se esse comportamento foi de tal gravidade a ponto de quebrar o equilíbrio contratual, segundo a sensibilidade do próprio julgador e os critérios de razoabilidade, da boa-fé e da isonomia, esteios que são da equidade.”
[2] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Seguro de Danos – Despesas de Salvamento e Despesas de Contenção: Regime Jurídico. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, vol. 60, maio/junho de 2014, Porto Alegre : Editora Magister, 2014, p. 6: “A essência do negócio jurídico situa-se, de um lado, na assunção pelo segurador da garantia de determinado interesse de segurado e, de outro, na obrigação do segurado de pagar um preço (prêmio) pela garantia convencionada. O objeto do contrato, de tal sorte, é a garantia do interesse contra um risco (CC, arts. 768 e 779), e não necessariamente a indenização de um dano. Não se trata, por isso, de contrato aleatório, como outrora se pensava. As obrigações bilateralmente contraídas são recíprocas e atuais: o seguradora, desde logo, contrai a obrigação de garantia, liberando o segurado do risco acobertado, e este assume, também de imediato, a obrigação de pagar o prêmio ajustado.”
[3] In O Contrato de Seguro de acordo com o Código Civil Brasileiro. 3ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo : Editora Roncarati, 2016, p. 122.
[4] STJ-3ªT., AgInt-AREsp 887.060, Rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva; DJe 23/03/2017.
[5] STJ-4ªT., REsp 1.275.276/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão; DJe 09/08/2016.
[6] TJ/SP-28ª Câmara de Direito Privado, Apelação n. 1006391-48.2015.8.26.0318, Rel. Des. Berenice Marcondes César, j. 17/02/2017, DJESP 23/02/2017.
[7] STJ-3ª Turma, REsp 1.412.816/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Dje 30.05.2014. Informativo de Jurisprudência do STJ n. 0542, em 27.06.2014.
[8] DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Voluma 1 : A – C. 2ª Edição revista, atualizada e aumentada. São Paulo : Editora Saraiva, 2005, p. 1.182.
[9] STJ-3ª Turma, REsp n. 1.486.717/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Boas Cuevas, DJe 14.12.2016.
[10] STJ; AgInt-AREsp 997.988; Proc. 2016/0268022-0; SP; Quarta Turma; Relª Minª Isabel Gallotti; DJE 09/05/2017.
[11] DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Voluma 1 : A – C. 2ª Edição revista, atualizada e aumentada. São Paulo : Editora Saraiva, 2005, p. 1.182: “Mas, independentemente disso, a responsabilidade do empregador pelos atos lesivos de seu empregado é, por lei, objetiva, tendo ação regressiva contra causador do dano.”
(*) Thiago Leone Molena é Advogado securitário. Especialista em Direito Civil e Direito do Consumidor. Advogado na TLM Advocacia.
(29.05.2017)