Por Thiago Leone Molena (*)
A ausência de carta protesto emitida pelo destinatário da carga em face do transportador, no prazo de 10 dias do artigo 754 do Código Civil, não afeta o direito de sub-rogação da seguradora e, tampouco, inviabiliza a ação regressiva de ressarcimento por que o prazo decadencial de 10 dias diz respeito apenas ao contrato de transporte devendo ser exigido e respeitado pelo proprietário da carga (contratante) e o transportador (contratado) não ampliando seus efeitos para atingir a sub-rogação securitária do artigo 786 do Código Civil e o direito de regresso de terceiros.
Este é o entendimento da 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de São Paulo, no julgamento da apelação n. 1101752-67.2015.8.26.0100, em 16.02.2017.[1]
No caso, a seguradora ajuizou ação regressiva demonstrando o pagamento da indenização em decorrência de danos ao bem segurado durante o transporte marítimo. A carga foi desembarcada, em 13.04.2013, quando foi lavrado o termo de avaria pela autoridade portuária apontando que o contêiner estava “amassado”, “enferrujado”, “arranhado” e que a embalagem estava avariada. O transportador rodoviário fez a retirada do volume sem ressalvar qualquer irregularidade. Contudo, em 10.06.2013, o segurado (proprietário da carga) emitiu carta protesto convocando o agente de carga (representante do transportador) para participar da vistoria técnica realizada por empresa especializada para constatação e liquidação das avarias, que veio a confirmar as avarias inicialmente apontadas.
O agente de carga arguiu a impossibilidade jurídica da ação regressiva em virtude da decadência do direito do proprietário da carga, uma vez que a carta protesto não foi emitida dentro do prazo de 10 dias do artigo 754 do Código Civil, o que resultaria (em tese) na lesão ao direito de sub-rogação da seguradora e na impossibilidade jurídica da ação regressiva.
Dispõe o artigo 754 do Código Civil, especialmente, o Parágrafo Único, acerca da conduta da proprietária da carga:
Art. 754. As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.
Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias a contar da entrega.
O direito de sub-rogação da seguradora consta do artigo 786 do Código Civil:
Art. 786. Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.
O Tribunal afastou o argumento do agente de carga fixando que a regra do artigo 754 do Código Civil é aplicada somente no contrato de transporte e nas responsabilidades que lhes são inerentes e exigíveis do proprietário da carga (contratante) e do transportador (contratados) sem qualquer ampliação de efeitos jurídicos ao direito de sub-rogação da seguradora, que se vincula ao caso após cumprir o contrato de seguro, nos termos do artigo 786 do Código Civil.
A Desembargadora Relatora, Dra. Jonize Sacchi de Oliveira apontou:
“Ocorre, porém, que o aludido permissivo legal somente diz respeito às relações entre o transportador e o destinatário da carga, não se aplicando à seguradora, cujo direito de regresso é disciplinado pelo artigo 786 do mesmo diploma legal. Vale dizer, índice a regra disciplinada no art. 754 do Código Civil apenas entre a transportadora e a destinatária. A seguradora, por sua vez, não tem interesse em reclamar sobre as avarias de carga, haja vista que o seu objetivo é sub-rogar-se no direito ao ressarcimento contra o responsável pelo sinistro. ”
Há um especial argumento secundário para o posicionamento da julgadora:
“(...) não haveria sentido sujeitar a seguradora ao prazo decadência de 10 dias, se a própria lei fixa o prazo de 1 ano para que o segurado se volte contra o segurador, ou este contra aquele (art. 206, §1º, II, Código Civil.”
Assim, a conclusão não poderia ser mais objetiva:
“Dessarte, a falta de reclamação da segurada pela avaria da carga é ineficaz perante a seguradora.” (grifo nosso).
A decisão baseia-se em outros dois precedentes do Tribunal de São Paula. Em ambos, o posicionamento é o mesmo:
“Prazo decadencial de 10 dias de que trata o parágrafo único, do art. 754 do Código Civil, que tem aplicação à relação contratual existente entre o destinatário e a transportadora.” (Apelação 4002318-85.2013.8.26.0565, 23ª Câmara, 30.09.2015 – grifo nosso).
“No contrato de transporte, o prazo decadencial de 10 dias previsto no art. 754, parágrafo único, do Código Civil, refere-se à reclamação pela perda parcial ou avaria da carga, isto é, à denúncia do evento danoso na relação contratual entre a empresa contratante e a transportadora contratada. Este prazo (decadencial), não se confunde nem interfere no direito à indenização pelos prejuízos causados.” (Apelação n. 063637-70.2010.8.26.0002, 23ª Câmara, 13.08.2014 – grifo nosso).
O posicionamento do Tribunal de São Paulo dá a exata dimensão da natureza jurídica da carta protesto e a sua aplicabilidade restrita ao contrato de transporte sem afetar a relação securitária. Ela, em suma, é um simples instrumento jurídico de declaração de ocorrência de fato dano supostamente ocorrido durante do transporte para preservação de direito e meio de ciência de todos os interessados para posterior averiguação técnica do ocorrido, sua liquidação e constatações de possíveis responsáveis. Importante apontar que ela não é meio de fixação de responsabilidade e/ou prova inequívoca da ocorrência do dano e da sua extensão. A carta protesto não substituiu a vistoria técnica, que deverá contar com a presença de todos os interessados e possíveis responsáveis, em respeito ao princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório (inciso LV, do artigo 5º da Constituição).
Diante do posicionamento do Tribunal de São Paulo, a ausência ou a intempestividade de carta protesto do segurado (proprietário da carga) em face do transportador suposto causador do dano NÃO pode ser tida como desrespeito e/ou inobservância de obrigação contratual pelo segurado, nem mesmo pode resultar na perda de direito à cobertura contratada sob o fundamento de lesão ao direito sub-rogação a partir alínea “f” da cláusula XXIV[2] e da alínea “e” da cláusula XXIII[3], ambas do clausulado padrão da Circular 354 de 2007, que instituto o seguro de transporte.
Em suma, a negativa de indenização securitária com base nestes critérios contratuais e a partir desta fundamentação (lesão ao direito de sub-rogação) é abusiva por afligir os princípios de boa-fé objetiva, da lealdade contratual, da cooperação obrigacional e da eticidade, que são as bases do ordenamento jurídico-contratual atual sem falar na aplicação dos princípios decorrentes da relação de consumo e do contrato de adesão.
[1] Ementa: “APELAÇÃO E AGRAVO RETIDO – AÇÃO REGRESSIVA – TRANSPORTE MARÍTIMO DE CARGAS – DECADÊNCIA – O prazo decadencial de 10 dias de que trata o parágrafo único, do art. 754 do Código Civil, somente é aplicável à relação contratual existente entre o destinatário e a transportadora – Efetivo pagamento de indenização pela seguradora à segurada – Direito à sub-rogação nos termos do artigo 786 do Código Civil – ILEGITIMIDADE PASSIVA ‘AD CAUSAM’ – O agente desconsolidador de cargas, indicado expressamente no “Bill ok Lading” e único representante do NVOCC no Brasil, tem legitimidade para responder pelo inadimplemento do contrato de transporte – RESPOSNABILIDADE CIVIL – AVARIAS – LAUDO UNILATERAL – Embora a vistoria técnica tenha sido lavrada à revelia da demandada, o laudo de avaria apresentado aos autos não foi impugnado especificamente – Confecção de laudo por empresa especializada em vistoria e cuja reputação não foi questionada nos autos – Conclusões, ademais, que se mostram coerentes com os demais documentos integrantes dos autos – PROVA – O acervo documental reunido aos autos revela que os danos causados à estrutura da carga ocorreram anteriormente à sua retirada do terminal portuário o que atrai a responsabilidade civil da transportadora marítima – SENTENÇA MANTIDA – AGRAVO RETIDO REJEITADO E APELO DESPROVIDO.”
[2] “Além dos casos previstos em lei e nesta apólice, a Seguradora ficará isenta de qualquer obrigação decorrente deste contrato se: [...] f) houver a inobservância ou negligência do consignatário, ou seus representantes, no cumprimento das obrigações que têm como propósito evitar ou reduzir perdas, assim como assegurar o direito de ressarcimento da Seguradora contra transportadores, depositários, ou outras partes envolvidas em sinistro indenizável pelas coberturas deste seguro.”
[3] “Em caso de sinistro coberto por esta apólice, o Segurado, seus empregador e agentes se obrigam a cumprir as seguintes disposições: [...] e) assegurar que todos os direitos contra transportadores, depositários ou terceiros estejam devidamente preservados e exercidos, observado o disposto na legislação em vigor. ”
(*) Thiago Leone Molena é Advogado securitário. Especialista em Direito Civil e Direito do Consumidor. Diretor da TLM - Legal Risk Consulting.
(07.04.2017)