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A Responsabilidade Médica e as Medidas de Proteção

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marineli--2018-45 Melisa Cunha Pimenta: Mestre em Direito Civil pela PUC – São Paulo (2009); Pós-Graduada em Direito do Consumidor pela PUC – São Paulo (2003); Graduada em Direito pela PUC – São Paulo (2000); Autora do livro Seguro de Responsabilidade Civil, São Paulo: Atlas, 2010; Membro da AIDA (“Associação Internacional do Direito do Seguro”). Sócia do PMR Advogados Associados.

 

 

 

 

 

 

 


1. Da Obrigação de Meio e da Necessidade de Prova da Culpa

As ações de indenização decorrentes de responsabilidade médica estão cada vez mais frequentes, sendo crescente a judicialização na área da saúde. Segundo dados divulgados pelo jornal “O Estado de São Paulo”[1], em 2015 houve o acréscimo de 160% do número de ações ajuizadas em relação ao ano anterior; sendo a terceira maior causa de morte nos Estados Unidos, conforme dados divulgados pela Revista “Super Interessante”[2].

Em muitas situações, o paciente não compreende que o médico não assume uma obrigação de “resultado”. Por mais competente e qualificado que seja, o profissional da área da saúde não assume a obrigação de cura, ainda mais quando se está diante de casos graves e/ou terminais, mas sim uma obrigação de “meio”, uma obrigação de prestar os serviços da melhor forma possível, propiciando ao paciente todos os cuidados e tratamentos possíveis.

Conforme entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, “se a intervenção não chegar a bom termo, mas tiver sido encetada de acordo com a correta arte médica, segundo a exata técnica utilizada, nada responsabilizará”[3].

Disso resulta que o insucesso do tratamento ou a não obtenção do resultado esperado não significa a falha médica. A responsabilidade do médico não será presumida, devendo ser devidamente comprovada, mediante a comprovação da ocorrência de uma conduta culposa, por aquele que a alega, nos termos do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor[4], Código de Ética Médica[5] e artigos 927 e 186 do Código Civil[6].

Assim, o médico somente poderá ser responsabilizado se restar comprovado que ele agiu com culpa, nas modalidades de imperícia, imprudência ou negligência.

A imprudência consiste na falta de cautela/cuidado em decorrência de uma ação praticada. Como exemplo, pode-se citar a ministração de um medicamento em uma dose superior à adequada.

A negligência, por sua vez, também decorre da falta de cuidado/cautela, mas por uma conduta omissiva. Um exemplo, muito frequente, é a não observância de informações relevantes constantes no prontuário médico, tal como a anotação referente a uma alergia portada pelo paciente. Confira-se:

“No preenchimento dos formulários apresentados pelo Hospital, foi informada a alergia da paciente a dipirona (novalgina). Apesar disso, a medicação foi ministrada por equívoco pelo preposto do nosocômio na paciente. Após dez minutos da aplicação, a genitora dos recorrentes sofreu uma parada cardio-respiratória, secundária à reação anafilática, encefalopatia anóxica, culminando com seu coma e internação por cento e cinquenta dias. Após dez minutos da aplicação, a genitora dos recorrentes sofreu uma parada cardio-respiratória, secundária à reação anafilática, encefalopatia anóxica, culminando com seu coma e internação por cento e cinquenta dias. Superado o prazo de observação interna, foi dada alta à paciente e constatado seu estado vegetativo irreversível. Submetida aos cuidados de assistência domiciliar ininterrupta (home care – 24 horas por dia), os recorrentes acompanharam sua genitora sem andar, falar ou sequer esboçar reação, definhando até a morte, o que ocorreu aos seus 58 anos de idade, apenas 4 anos após a conduta negligente do médico vinculado ao hospital. Diante dessas particularidades e da orientação jurisprudencial em hipóteses semelhantes, fixa-se o valor da compensação por danos morais em 150 salários mínimos em favor de cada recorrente.”[7]

E a imperícia consiste na ausência de habilidade no exercício da atividade técnica. Como exemplo, pode-se citar o manuseio incorreto do fórceps, acarretando o traumatismo crânio-encefálico do recém-nascido.

Na prática, no mais das vezes, as condutas culposas de imperícia, imprudência e negligência se misturam e se confundem. Veja, a título ilustrativo, o julgado abaixo:

“Isto porque o médico responsável pelo parto normal foi imperito no manejo do fórceps, acarretando o traumatismo crânio-encefálico do recém-nascido, além de negligente ao desconsiderar o quadro clínico da gestante e as condições do feto para optar entre o parto normal e a cesariana. Neste passo, ficou evidente haver desproporção entre a pelve materna e a cabeça fetal. Sendo assim, a ausência de anotação da altura uterina no prontuário da gestante foi determinante para a opção pelo parto normal e o seu insucesso.”[8]

Não possuindo o Juiz o conhecimento técnico sobre a questão médica, ele, na grande maioria dos processos, utiliza-se de um profissional especializado, que é o Perito, para avaliar os documentos, como fichas clínicas, prontuários médicos, resultado de exames (perícia indireta) ou o exame do próprio paciente, quando isto for possível (perícia direta).

Eis o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acerca da necessidade da prova pericial nas ações de responsabilidade médica:

“O meio de prova hábil a demonstrar a inexistência da falha na prestação do serviço é a prova pericial diante da especialidade do conhecimento, sendo o meio de prova relevante (CPC, art. 400, II), pois, consoante lição de Cândido Rangel Dinamarco, “onde termina o campo acessível ao homem de cultura comum ou propício às presunções judiciais, ali começa o das perícias” (Instituições de Direito Processual Civil, Vol. III, 6ª edição, Malheiros, p. 613).”[9]

Considerando que a responsabilidade deve estar devidamente demonstrada, não sendo essa presumida, é muito importante que os profissionais, desde o início de um tratamento, adotem medidas, a fim de se prevenirem em eventuais reclamações/ações feitas por pacientes, como as abaixo que serão demonstradas.

2. Medidas de Prevenção

a) Anotações Claras e Completas em Prontuários Médicos

O prontuário médico, embora seja um documento pertencente ao paciente, contendo toda a sua história clínica, permitindo a continuidade da prestação médica; também o é uma forma de defesa do médico, sendo um meio de se defender quanto a acusações feitas pelo paciente. Veja-se que a palavra “prontuário” origina-se do latim, tendo como significado “lugar onde são guardadas coisas de que se pode precisar a qualquer momento ”[10]

E, dessa forma, cabe ao médico fazer todas as anotações necessárias quanto ao atendimento prestado ao paciente, seja quanto ao quadro clínico apresentado, medicações ministradas, exames solicitados, hipóteses diagnósticas, tratamentos realizados de forma bastante legível e compreensível (art. 87 do Código de Ética Médica[11]), a fim de que possa, em uma eventual ação indenizatória, demonstrar que adotou todas as medidas adequadas e cabíveis, a fim de afastar a imputação de responsabilidade atribuída pelo paciente.

Em uma perícia médica indireta, o juiz determinará a quem compete a sua guarda (o médico ou à instituição que assiste o paciente) a disponibilização do prontuário médico ao Perito Judicial (art. 89, § 2º, do Código de Ética Médica[12]), passando o Expert a examinar tais documentos, sendo a sua conclusão, em razão da especificidade do tema, bastante determinante para a decisão a ser proferida pelo Juiz, ainda que este não esteja adstrito à conclusão do laudo pericial (artigo 479 do CPC[13]).

A título de exemplo, segue abaixo julgado oriundo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no qual a falta de informações constante na ficha clínica do paciente foi fator determinante para a condenação do profissional:

“Neste passo, ficou evidente haver desproporção entre a pelve materna e a cabeça fetal. Sendo assim, a ausência de anotação da altura uterina no prontuário da gestante foi determinante para a opção pelo parto normal e o seu insucesso. Tal orientação se impõe a partir das conclusões obtidas na decisão do Conselho Regional de Medicina. In verbis: “No entanto, a análise mais cuidadosa da ficha de evolução obstétrica revela um descuido de preenchimento que se reveste de grande importância quando levamos em conta o peso de nascimento do concepto. Assim é que o item referente à altura uterina, quando da internação da Sra. Renata, encontra-se em branco ...”, para, então, concluir que “Para tanto é possível que tenha desconsiderado a desproporção entre a cabeça fetal e a pelve materna, provocando a fratura de crânio no momento em que forçou o pólo cefálico a atravessar um canal de parto com dimensões inferiores àquelas que seriam necessárias”; “No entanto, o fato da ficha obstétrica não trazer o dado mais importante para esse tipo de análise, aponta para um grave descuido por parte do reclamado, não cabendo aqui qualquer justificativa baseada na natureza retrospectiva dessa constatação”[14]

b) Termo de Consentimento Assinado:

O médico possui a obrigação de informar, previamente à submissão do tratamento, ao paciente ou aos seus representantes legais (na hipótese de não poder fazer àquele), acerca de todos os riscos e possíveis complicações do procedimento indicado, a fim de que seja possível realizar a escolha consciente acerca da submissão ou não ao tratamento. Há comandos normativos expressos nesse sentido no Código de Ética Médica:

“IV – DIREITOS HUMANOS – É vedado ao médico:

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

V – RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES – É vedado ao médico:

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.”

Não existe uma forma, imposta pela lei, para que se dê essa instrumentação do consentimento; existindo apenas a obrigação de informar adequadamente.

Por cautela, todavia, a fim de que o profissional possa demonstrar que cumpriu com essa obrigação, recomenda-se que o termo de consentimento seja realizado da forma escrita, colhendo-se a assinatura do paciente e/ou do seu representante legal antes da realização do tratamento, detalhando os riscos e complicações possíveis relacionados de forma específica; não cumprindo com tal escopo o consentimento totalmente genérico.

A falta de cumprimento dessa obrigação, exceto nos casos de urgência/emergência, em que ocorre a necessidade de imediata intervenção como forma de preservar a vida e/ou a integridade física do paciente, configura falha no dever de informação, podendo o profissional vir a ser responsabilizado por isto.

“Agravo Interno nos Embargos de Declaração no Recurso Especial. Ação de Indenização por Danos Morais. Orquiectomia em menor sem consentimento dos responsáveis. Ausência do dever de informação do médico quanto aos riscos que o procedimento cirúrgico acarretaria na integridade psicofísica do menor.”[15]

c) Cautela em Mensagens Eletrônicas Trocadas com o Paciente:

Bastante cautela deve ser adotada pelo profissional com relação às respostas e afirmações realizadas via Correio Eletrônico ou WhatsApp com pacientes, pois as mensagens trocadas digitalmente podem ser utilizadas como meio de prova para demonstrar algum tratamento inadequado ao paciente, inclusive no que diz respeito a uma ofensa causada aos direitos de personalidade, dando ensejo a um pedido de reparação por danos morais.

Veja-se que tais mensagens eletrônicas podem ser objeto de uma ata notarial, nos termos do artigo 384 do Código de Processo Civil, que consiste em um instrumento público pelo qual um tabelião, a pedido de uma pessoa interessada, constata fatos/situações, dando a estes uma presunção de veracidade.

“Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião.

Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial.”

d) Manter um Bom Relacionamento com os Pacientes:

É sempre recomendável manter um bom relacionamento com o paciente e seus familiares, prestando um atendimento cauteloso e atencioso, em especial no pré e pós operatório.

Inclusive, em casos de ocorrência de complicações e/ou eventuais erros, mantê-los informados de sua ocorrência, esclarecendo sobre possíveis tratamentos reparadores.

Em estudo sobre o tema, as chances de ser demandado judicialmente, após o médico relatar ao paciente sobre um eventual erro, diminui consideravelmente quando comparado a situações em que o médico omite a sua ocorrência:

“A atitude dos pacientes frente aos médicos que lhes reportam seus erros também foi investigada em artigo publicado em 1996 por Witman. De 149 pacientes investigados, 98% se posicionaram a favor de saberem sobre erros médicos que aconteceram em seus tratamentos, 14% destes pacientes trocariam de médico após um erro pequeno, e 65% após um erro de gravidade moderada. Todos levariam em conta se o erro fosse revelado pelo próprio médico ou por outros, na hora de decidir se iriam ou não processá-lo, em casos de erro com gravidade moderada. Doze por cento desses pacientes processariam mesmo se fosse o médico que revelasse o erro, porém este percentual aumentaria para 20% caso soubessem do erro por outras pessoas. Concluiu que pacientes querem ser informados sobre erros que tenham incidido sobre eles durante seus tratamentos médicos, e este fato pode, inclusive, diminuir o número de processos e ações punitivas, enfatizando ainda a importância da comunicação honesta e clara entre os médios e seus pacientes.”[16]

3. Conclusão

Como se verifica, é crescente o ajuizamento de ações em face dos profissionais da área médica. Para tanto, o paciente deverá demonstrar a responsabilidade subjetiva do médico, isto é, se ele agiu cum culpa, nas modalidades de imperícia, imprudência e negligência.

Esse é o risco a que todo profissional da área médica está sujeito, sendo, portanto, bastante recomendável a adoção de medidas de prevenção, como a elaboração de um prontuário médico legível e claro, a prestação de informações adequadas ao paciente e/ou aos seus representantes legais, mediante a confecção de um termo de consentimento específico, além de manter uma boa relação com o paciente e familiares; como forma de se evitar o ajuizamento de uma ação judicial em face de si.



[2] Revista ref. mês de Julho/2018.
[3] Apelação nº 0043691-56.2003.8.26.0100 – Relator Desembargador Luiz Ambra – Julgamento: 02/09/2014.
[4] “Artigo 14 – (...) – § 4º – A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.
[5] “III – RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL – É vedado ao médico:
Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.”
[6] “Artigo 927 – Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
“Artigo 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
[7] Julgado oriundo do Superior Tribunal de Justiça: REsp 1.698.812 – Relatora Ministra Nancy Andrighi – Julgamento: 13/03/2018.
[8] TJSP – Apelação nº 0101376-11.2009.8.26.0100 – Relator Desembargador Theodureto Camargo – julgamento: 12/11/2014.
[9] TJSP – Apelação nº 0041810-32.2012.8.26.0002 – Relator Desembargador Hamid Bdine – data de julgamento: 08/02/2018.
[11] “Art. 87 Deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente.
§1º O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina.”
[12] “Art. 89 – §1º Quando requisitado judicialmente o prontuário será disponibilizado ao perito médico nomeado pelo juiz.”
[13] Artigo 479 do CPC – “O Juiz apreciará a prova pericial de acordo com o disposto no art. 371, indicando na sentença os motivos que o levaram a considerar ou a deixar de considerar as conclusões do laudo, levando em conta o método utilizado pelo perito.”
[14] TJSP – Apelação nº 0101376-11.2009.8.26.0100 – Relator Desembargador Theodureto Camargo – julgamento: 27/11/2014.
[15] STJ-AgInt nos EDcl no RECURSO ESPECIAL Nº 1.613.722-PR – MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE – julgamento: 23/05/2017.
[16]  http://www.scielo.br/pdf/jped/v78n4/v78n4a04 – Jornal de Pediatria – Vol. 78, Nº 4, 2002.
 
(10.09.2018)