Por Voltaire Marensi, advogado e professor.
Em sede de AgInt nos EDcl no Recurso Especial sob número 2012398, relator ministro Moura Ribeiro, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em sessão virtual de 23/04/2024 a 29/04/2024, por unanimidade, negou provimento ao recurso aforado por uma segurada contra sua seguradora nos termos da seguinte ementa:
“CIVIL E PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. SEGURO DE VEÍCULO. EMBRIAGUEZ DO MOTORISTA/TERCEIRO. CAUSA DETERMINANTE DO ACIDENTE. INDENIZAÇÃO INDEVIDA.
DECISÃO MANTIDA. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
1. Consoante a jurisprudência desta Corte, no contrato de seguro de automóvel, o estado de embriaguez do condutor de veículo, caso seja determinante para a ocorrência do sinistro, é circunstância apta a excluir a cobertura do seguro contratado, por constituir causa de agravamento do risco.
2. No caso, afigura-se correto o entendimento do acórdão recorrido que, ao reconhecer que a embriaguez do preposto da agravante contribuiu para o agravamento do risco coberto, julgou improcedente a ação de cobrança securitária.
3. Agravo interno não provido.
Segundo o voto do relator a segurada, em sede de recurso especial, alegou violação ao art. 768 do Código Civil, bem como dissídio jurisprudencial, ao sustentar que o empréstimo a terceiro e a embriaguez do segurado não importaria em agravamento intencional do risco contratado, a justificar a exclusão da cobertura securitária.
Asseverou que no entendimento do Tribunal “a quo” a parte que interessa, teria afirmado que o acidente de trânsito ocorrido em 23/08/2019, com envolvimento do veículo da Autora/Apelante, que na data era dirigido pelo seu filho, estaria coberto pela apólice contratada perante a seguradora.
O condutor nos autos do processo, prossegue o relator, “teria confessado ter ingerido álcool, tendo sido autuado em flagrante por crime de trânsito por conduzir veículo automotor sob a influência de álcool.
Não havendo outras provas nos autos, para o Tribunal de origem, restou indene de dúvidas a responsabilidade do filho da Autora/Apelante pela ocorrência do acidente.
Como segundo argumento a Autora/Apelante também trouxe à colação julgados do Superior Tribunal de Justiça para corroborar seu entendimento, de que o simples empréstimo do veículo não configura o agravamento intencional do risco do sinistro, sobretudo porque quando teria emprestado o veículo ao seu filho, ele, não havia ingerido álcool.
Essa cláusula de excludente de cobertura de sinistro estaria baseada no que dispõe o art. 768 do Código Civil:
Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”.
Aduz, ademais, o relator em seu voto, de que a ingestão de álcool é uma das principais hipóteses de agravamento intencional do risco, sendo de conhecimento público e irrestrito os efeitos do álcool no organismo, como a redução dos reflexos e diminuição de prudência no trânsito.
Ademais, ressaltou o relator nos autos do processo em análise, de que a segurada alertou para “o fato do condutor do veículo não ser o segurado, mas sim um terceiro, pois teria havido o empréstimo do veículo, o que não afastaria a ocorrência da excludente de cobertura, pois o segurado continuaria tendo responsabilidade sobre o veículo”.
Consoante o voto condutor no STJ, “o simples fato de o segurado ter emprestado o veículo, que possuía seguro com cláusula de exclusão de cobertura para caso de condutor embriagado, por óbvio, torna o primeiro responsável pelo ato delituoso, independentemente da não- culpabilidade e, portanto, indevida a cobertura securitária.
Ademais, seria certo afirmar que se a Autora/Apelante, ora recorrente, não tivesse emprestado seu veículo para o filho o acidente com o automóvel segurado não teria ocorrido, portanto, sua ação contribuiu para o surgimento do evento danoso”.
Também asseverou que havendo prova da embriaguez do condutor do veículo e que esta foi causa preponderante para ocorrência do sinistro, não há falar em cobertura securitária.
A matéria aqui tratada, prossegue o voto do relator, “foi objeto de exame pela Egrégia Terceira Turma, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, firmando orientação de que: 1) o agravamento do risco não se dá somente quando o próprio segurado se encontra alcoolizado na direção do veículo, mas abrange também os condutores principais (familiares, empregados e prepostos). O agravamento intencional de que trata o art. 768 do CC/02 envolve tanto o dolo quanto a culpa grave do segurado, que tem o dever de vigilância (culpa in vigilando) e o dever de escolha adequada daquele a quem confia a prática do ato (culpa in eligendo); 2) o seguro automotivo não pode servir de estímulo para a aceitação de riscos excessivos que, repetidamente, beiram o abuso de direito, a exemplo da embriaguez ao volante. A função social desse negócio jurídico o torna instrumento de valorização da segurança viária, colocando-o em posição de harmonia com as leis penais e administrativas que criaram ilícitos a fim de proteger a segurança pública no trânsito; 3) à luz do princípio da boa-fé, pode-se concluir que o segurado, ao ingerir bebida alcoólica e assumir a direção do veículo ou emprestá-lo a alguém desidioso, que irá, por exemplo, fazer uso de álcool (culpa in eligendo ou in vigilando), frustra a justa expectativa das partes contratantes na execução do seguro, pois rompe-se com os deveres anexos do contrato, como os de fidelidade e de cooperação; e 4) constatado que o condutor do veículo estava sob influência do álcool (causa direta ou indireta) quando se envolveu em acidente de trânsito – ônus probatório que compete à seguradora –, há presunção relativa de que o risco da sinistralidade foi agravado, a ensejar a aplicação da pena do art. 768 do CC/02”.
A propósito, continua o relator, calha ao caso vertente a ementa de outro julgamento, em sede de recurso infraconstitucional:
“RECURSO ESPECIAL. CIVIL. SEGURO DE AUTOMÓVEL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. TERCEIRO CONDUTOR (PREPOSTO). AGRAVAMENTO DO RISCO. EFEITOS DO ÁLCOOL NO ORGANISMO HUMANO. CAUSA DIRETA OU INDIRETA DO SINISTRO. PERDA DA GARANTIA SECURITÁRIA. CULPA GRAVE DA EMPRESA SEGURADA. CULPA IN ELIGENDO E CULPA IN VIGILANDO. PRINCÍPIO DO ABSENTEÍSMO. BOA-FÉ OBJETIVA E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE SEGURO.
1. Cinge-se a controvérsia a definir se é devida indenização securitária decorrente de contrato de seguro de automóvel quando o causador do sinistro foi terceiro condutor (preposto da empresa segurada) que estava em estado de embriaguez.
2. Consoante o art. 768 do Código Civil, "o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato".
Logo, somente uma conduta imputada ao segurado, que, por dolo ou culpa grave, incremente o risco contratado, dá azo à perda da indenização securitária.
3. A configuração do risco agravado não se dá somente quando o próprio segurado se encontra alcoolizado na direção do veículo, mas abrange também os condutores principais (familiares, empregados e prepostos). O agravamento intencional de que trata o art. 768 do CC envolve tanto o dolo quanto a culpa grave do segurado, que tem o dever de vigilância (culpa in vigilando) e o dever de escolha adequada daquele a quem confia a prática do ato (culpa in eligendo).
4. A direção do veículo por um condutor alcoolizado já representa agravamento essencial do risco avençado, sendo lícita a cláusula do contrato de seguro de automóvel que preveja, nessa situação, a exclusão da cobertura securitária. A bebida alcoólica é capaz de alterar as condições físicas e psíquicas do motorista, que, combalido por sua influência, acaba por aumentar a probabilidade de produção de acidentes e danos no trânsito. Comprovação científica e estatística.
5. O seguro de automóvel não pode servir de estímulo para a assunção de riscos imoderados que, muitas vezes, beiram o abuso de direito, a exemplo da embriaguez ao volante. A função social desse tipo contratual torna-o instrumento de valorização da segurança viária, colocando-o em posição de harmonia com as leis penais e administrativas que criaram ilícitos justamente para proteger a incolumidade pública no trânsito.
6. O segurado deve se portar como se não houvesse seguro em relação ao interesse segurado (princípio do absenteísmo), isto é, deve abster-se de tudo que possa incrementar, de forma desarrazoada, o risco contratual, sobretudo se confiar o automóvel a outrem, sob pena de haver, no Direito Securitário, salvo-conduto para terceiros que queiram dirigir embriagados, o que feriria a função social do contrato de seguro, por estimular comportamentos danosos à sociedade.
7. Sob o prisma da boa-fé, é possível concluir que o segurado, quando ingere bebida alcoólica e assume a direção do veículo ou empresta-o a alguém desidioso, que irá, por exemplo, embriagar-se (culpa in eligendo ou in vigilando), frustra a justa expectativa das partes contratantes na execução do seguro, pois rompe-se com os deveres anexos do contrato, como os de fidelidade e de cooperação.
8. Constatado que o condutor do veículo estava sob influência do álcool (causa direta ou indireta) quando se envolveu em acidente de trânsito – fato esse que compete à seguradora comprovar -, há presunção relativa de que o risco da sinistralidade foi agravado, a ensejar a aplicação da pena do art. 768 do CC. Por outro lado, a indenização securitária deverá ser paga se o segurado demonstrar que o infortúnio ocorreria independentemente do estado de embriaguez (como culpa do outro motorista, falha do próprio automóvel, imperfeições na pista, animal na estrada, entre outros).
9. Recurso especial não provido”.
(Resp nº 1.485.717/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 14/12/2016).
Nesta toada, adita o relator do processo em pauta:
“Vejam-se, ainda os seguintes julgados: AgInt no REsp n.2.054.186/SP, minha relatoria, Terceira Turma, julgado em 29/5/2023, DJe de 31/5/2023; AgInt no AREsp n. 1.817.743/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 8/5/2023, DJe de 10/5/2023; AgInt no AREsp 1.302.619/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Terceira Turma, julgado em
1º/7/2019, DJe 2/8/2019; AgInt no REsp 1.747.525/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Terceira Turma, julgado em 10/6/2019, DJe 14/6/2019; AgInt nos EDcl no REsp 1.602.690/PE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, julgado em 27/11/2018, DJe 4/12/2018; e, AgInt no AREsp 1.326.226/RS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, Quarta Turma, julgado em 27/11/2018, DJe 4/12/2018”.
Finaliza o relator em seu voto, afirmando:
“No caso, em que pese o reforço argumentativo, afigura-se correto o entendimento do acórdão recorrido que, ao reconhecer que a embriaguez do preposto da segurada contribuiu para o agravamento do risco coberto, julgou improcedente a ação de cobrança securitária.
Acrescente-se ainda que, ao contrário do que afirma a segurada quer fazer crer, existe Boletim de Ocorrência (...) produzido logo após o acidente, que certificou a embriaguez do condutor do veículo da Autora/Apelante, através de teste de etilômetro que teve como resultado 0,42 Mg/L, bem como o próprio condutor confessou ter ingerido álcool, tendo sido autuado em flagrante por crime de trânsito.
Desse modo, não sendo a linha argumentativa apresentada capaz de evidenciar a inadequação dos fundamentos invocados pela decisão agravada, o presente agravo interno não se revela apto a alterar o conteúdo do julgado impugnado, devendo ele ser integralmente mantido em seus próprios termos.
Nessas condições, negou também provimento ao agravo interno”.
Por amor ao debate e frente ao que está escrito na nova lei do Marco Legal do Seguro é verdade que não existe qualquer dispositivo que esteja escrito, especificamente, sobre a embriaguez do segurado, quer ao volante, quer no caso de seguro de vida.
Nosso vigente Código Civil também não traz uma única seção relativa ao seguro, que aborde um princípio de tal importância neste contrato relacional. Em artigos esparsos, vale dizer, nos artigos 759, 761,762, 768, 769 se faz alusão ao risco, ou seja, de um modo pouco sistemático, em total dissintonia com o que se passa corriqueiramente em julgados prolatados por nossos Tribunais, que julgam a questão da embriaguez ao volante tanto no seguro de danos como nas hipóteses relativas ao seguro de vida.
Nos casos de seguros, lato senso, a Súmula 620 do Superior Tribunal de Justiça proíbe que seguradoras excluam a cobertura de seguros de vida ou de danos por atos do segurado praticados sob efeito de álcool ou de substâncias tóxicas.
Diz seu enunciado:
“A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da
indenização prevista em contrato de seguro de vida”[1].
Em verdade, nosso atual Código Civil, que será revogado integralmente na parte que se refere ao contrato de seguro, quando passar a viger a nova lei de seguros[2] disciplina esta matéria dentro de suas Disposições Gerais, tratando atualmente, de modo lacônico, o agravamento do risco .
O Código Civil ainda vigente no Capítulo XV, quando trata dos contratos em espécie, preceitua em seu artigo 768, que “o segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”.
A nova norma, de modo mais claro e objetivo, visando proteger o equilíbrio contratual evita comportamentos abusivos por parte do segurado, dispondo na Seção XII – Do Sinistro[3] – em seus três incisos, respectivamente, providências a serem seguidas pelo segurado, estabelecendo obrigações para impedir prejuízos à seguradora.
Todavia, não existe no novo Marco Legal do Seguro nenhum dispositivo que contemple a embriaguez como fator agravante e impeditivo para que o segurado não tenha direito à indenização securitária.
Qual seria o motivo que o legislador não previu esta casuística?
Poderia enumerá-los alguns, porém, vou me ater a somente a três deles porque guardam identidade com o caso concreto.
O primeiro se refere a um voto proferido pelo ministro Ari Pargendler, no qual ficou consignado:
“O risco que resulta do empréstimo do veículo só estaria abrangido pelo contrato de seguro, se fosse expressamente incluído na apólice.
É que então, o risco é específico de um outro ramo de seguro, o de fidelidade, que pela própria natureza tem parâmetros diversos.
Com certeza o seguro para essa finalidade seria bem mais caro.
Uma interpretação que autorizasse o entendimento de que todo seguro de automóvel embute o seguro de fidelidade levaria, evidentemente, as seguradoras a aumentarem o respectivo prêmio nos seguros futuros, em prejuízo dos consumidores que não emprestam seus automóveis, ou só os emprestam a pessoas confiáveis.
Ou alguém pensa que os custos de tais sinistros não seriam repassados aos consumidores?
Voto, por isso no sentido de conhecer do recurso especial, dando-lhe provimento para julgar improcedente o pedido, condenando a autora ao pagamento das custas e dos honorários de advogados, estes à base de dez por cento do valor da causa, corrigidos monetariamente.”[4]
O segundo argumento é de que na União Europeia, por exemplo, existem seguradoras que estipulam cláusulas específicas de exclusão por embriaguez, desde que sejam encontrados índices de graduação alcoólica estabelecidas em determinadas apólices de seguros, previamente acordadas entre segurados e seguradoras.
Por último e talvez o mais relevante seja a hipótese de que na súmula 620 do STJ, acima transcrita, seja, quem sabe, alterada ou até suprimida, pois seu conteúdo trata de embriaguez do segurado a qual não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida.
Sua aplicação é somente para o seguro de vida ou seu conteúdo poderá sofrer uma interpretação mais abrangente para se coadunar com o espírito insuflado pelo legislador na nova lei de seguros que não previu tal situação?
São algumas breves reflexões que lanço no final deste ensaio para uma maior meditação sobre o tema em pauta.
Porto Alegre, 06/04/2025.
[1] Referências: CC/2002, art. 768.CDC, art. 54, §§ 3º e 4º.Precedentes: EREsp 973.725-SP Segunda Seção 25.04.2018 – DJe 02.05.2018) – acórdão publicado na íntegra REsp 1.665.701-RS (3ª T, 09.05.2017 – DJe 31.05.2017) AgInt no AREsp 1.081.746-SC (4ª T, 17.08.2017 – DJe 08.09.2017) AgInt no AREsp 1.110.339-SP (4ª T, 05.10.2017 – DJe 09.10.2017) Segunda Seção, em 12.12.2018. DJe 17.12.2018.
[2] Lei nº 15.040, de 9 de dezembro de 2024, em vacatio legis de 1 (um) ano).
[3] Artigo 66 e seguintes da Nova Lei de Seguros.
[4] In, Voltaire Marensi. O Seguro, a Vida e sua Modernidade, 2ª edição. LumenJuris/ Editora, páginas 332 e 333.