A Obrigação dos Planos de Saúde no Custeio de Transfusão de Sangue Decorrente de Complicações em Cirurgias Plásticas Estéticas


Por Voltaire Marenzi. Advogado e Professor
Sob o título abaixo rotulado o Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial 2.187.556 estampado no Informativo Migalhas, datado de 19 do corrente mês.
Diz o enunciado deste Informativo:
“Plano de saúde deve custear hemograma e transfusão de sangue realizados em razão de complicações durante cirurgias plásticas de natureza estética”[1].
O voto foi proferido perante a 3ª Turma daquela Corte, da relatoria da ministra Fátima Nancy Andrighi.
No processo acima identificado, prossegue o referenciado Informativo, “a autora da ação buscava impedir a cobrança de serviços hospitalares prestados durante cirurgias de lipoescultura e mastopexia com prótese, alegando que, diante de complicações médicas, houve necessidade de hemograma e transfusão de sangue, os quais deveriam ser custeados pelo seguro-saúde”.
Prossegue, ainda, a sobredita reportagem:
“A 8ª Turma Cível do TJ/DF, no entanto, manteve a sentença que rejeitou os pedidos.
O relator, desembargador Diaulas Costa Ribeiro, entendeu que o hospital não era obrigado a redirecionar a cobrança ao seguro quando o atendimento se dava em regime particular, com contrato assinado pela paciente assumindo a responsabilidade financeira.
O Tribunal também afastou o argumento de que se tratava de situação de emergência, frisando que os procedimentos eram eletivos e com fins estéticos”.[2]
Desta decisão foi manejado, pela autora, recurso especial.
A ministra relatora, acima nominada, em seu voto, invocou precedentes do próprio STJ.
Segundo ela "Esta intercorrência é sim emergência, porque a paciente pode morrer, ou se for um homem que estiver fazendo, também pode morrer se não for tratado imediatamente.
Nancy Andrighi destacou que o art. 35-C, inciso I, da lei 9.656/98, em conformidade com a resolução normativa 465/21 da ANS, impõe a cobertura de procedimentos necessários ao tratamento de complicações clínicas e cirúrgicas, sejam elas decorrentes de procedimentos cobertos ou não pelo contrato, desde que constem do rol de procedimentos em saúde. Grifo meu.
No presente caso, concluiu pela obrigatoriedade do custeio do hemograma e da transfusão de sangue pela seguradora”[3].
Ao ensejo deste entendimento, última palavra em sede infraconstitucional, pretendo fazer um breve retrospecto da saúde suplementar no Brasil.
Ela é disciplinada pela Lei nº 9.656/1998 e fiscalizada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que estabelece o rol de procedimentos de cobertura obrigatória. Tradicionalmente, as operadoras de planos de saúde não estavam obrigadas a custear procedimentos cirúrgicos de finalidade exclusivamente estética, uma vez que não se relacionam diretamente à prevenção, tratamento ou recuperação da saúde.
Contudo, surgem discussões relevantes quando, no curso de uma cirurgia plástica de natureza estética, o paciente desenvolve complicações médicas que exigem procedimentos indispensáveis à preservação da vida, como a transfusão sanguínea. A questão central é saber se, mesmo diante da exclusão contratual de cirurgias estéticas, o plano de saúde deve arcar com as consequências clínicas decorrentes de tais procedimentos.
Embora os contratos de planos de saúde possam estabelecer cláusulas restritivas, a Lei que normatiza estes planos, vale dizer, com previsão expressa em seu artigo 10, inciso II, com a redação dada pela Medida Provisória número 2177-44, de 2001, da Lei que rege à espécie, se encontra elencado procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim.
Impende sublinhar, ao azo, que a literatura jurídica brasileira classifica os serviços médicos em áreas como cirurgia plástica estética, em tese, como uma obrigação de resultado. A obrigação de resultado é aquela em que o devedor, ou o prestador de serviços se compromete a alcançar um resultado específico, e sua não ocorrência gera presunção de culpa, cabendo ao devedor provar que o inadimplemento se deu por motivos alheios à sua vontade.
A distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado não está expressa literalmente em nosso atual Código Civil, mas decorre da interpretação doutrinária e jurisprudencial.
Abordando o tema, registraram de modo detalhado Carlos Alberto Menezes Direito e Sérgio Cavalieri Filho:
“É responsável o hospital por todos os atos que sejam de seu domínio, como por exemplo infecção hospitalar, porque responsável pelas condições de assepsia e de utilização de medicamentos por ele fornecidos, ou da transfusão de sangue realizada em suas dependências, ademais da correta manutenção dos equipamentos e do adequado treinamento e aperfeiçoamento do serviço de enfermagem”[4].
No caso em análise, houve a necessidade de transfusão de sangue indicada em razão de complicações cirúrgicas, embora não possuindo finalidade estética, mas terapêutica e vital. A sua negativa de cobertura afrontaria não apenas a boa-fé objetiva nas relações contratuais (art. 422 do Código Civil), mas também o direito fundamental à saúde (art. 196 da Constituição Federal).
A jurisprudência brasileira é firme no sentido de que, ainda que a cirurgia plástica de cunho meramente estético não seja de cobertura obrigatória, as intercorrências médicas que ameacem a vida ou a integridade física do paciente devem ser custeadas pelo plano de saúde.
O contrato pode, em tese, excluir a cirurgia estética, mas não pode excluir o tratamento das complicações médicas decorrentes dela.
A negativa de cobertura de procedimentos imprescindíveis à preservação da vida configura conduta abusiva, vedada pelo art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
A recusa injustificada pode ensejar indenização por danos morais, em razão do sofrimento imposto ao consumidor em momento de vulnerabilidade extrema.
Do ponto de vista principiológico, a interpretação deve harmonizar o direito do consumidor à proteção contra cláusulas abusivas (art. 6º, IV, CDC); o direito constitucional à saúde e à vida (artigos 5º e 196 da CF); o equilíbrio contratual entre operadora e beneficiário, em consonância com a função social do contrato (art. 421 do Código Civil).
Portanto, a exclusão contratual da cirurgia estética não pode ser ampliada para negar procedimentos emergenciais, como a transfusão de sangue, quando necessária à preservação da vida.
Em resumida síntese. Os planos de saúde não são obrigados a custear a cirurgia plástica estética em si, salvo quando houver finalidade reparadora (como nos casos de reconstrução pós-acidente ou doença). Contudo, ao se depararem com complicações médicas decorrentes de tais procedimentos, têm o dever de cobrir integralmente o tratamento emergencial ou indispensável à preservação da saúde do beneficiário, o que inclui a transfusão de sangue.
Assim, eventual negativa de cobertura representa afronta ao ordenamento jurídico brasileiro, ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito fundamental à saúde, devendo ser considerada abusiva e passível de responsabilização civil da operadora.
É o que penso.
Porto Alegre, 21 de agosto de 2025.
[1] https://www.migalhas.com.br/quentes/438192/stj-plano-deve-custear-transfusao-por-emergencia-em-cirurgia-plastica.
[2] Informativo citado.
[3] Ibidem.
[4] Comentários ao Novo Código Civil, volume XIII. Editora Forense, 2004, páginas 451/452.