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A Nova Lei de Seguros: o que deve mudar na relação entre seguradora e ressegurador?

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Por Flavia Hammerle Rezende (*)

flavia 1885O resseguro sempre desempenhou um papel crucial para a estabilidade do setor de seguros, funcionando como ferramenta de transferência de risco e como elemento essencial para proteger economias, empresas e indivíduos em tempos de incerteza. Em um cenário global marcado por volatilidade, mudanças climáticas, novas tecnologias e riscos emergentes, essa relevância se intensifica. Aprovada em dezembro de 2024, e com entrada em vigor prevista para o final de 2025, a Lei nº 15.040/2024, conhecida como Nova Lei de Seguros, representa a maior mudança legal do setor desde a abertura do mercado de resseguros em 2008.

A abertura e evolução do mercado brasileiro já demonstraram, em diferentes momentos da história, como a parceria entre seguradoras e resseguradores é capaz de sustentar o crescimento e a resiliência do setor. O resseguro não atua apenas como fonte de capacidade financeira, mas também como transmissor de conhecimento técnico e de boas práticas globais, elementos essenciais em períodos de transição regulatória. Experiências internacionais mostram que, em mercados em desenvolvimento ou em mudança, a atuação próxima do ressegurador é determinante para garantir estabilidade, competitividade e segurança na assunção de riscos. 

Com a entrada em vigor da Nova Lei, essa função estratégica ganha ainda mais relevância. O novo marco impõe ajustes significativos aos contratos, processos e à governança do setor, exigindo adaptação rápida e consistente. Nesse cenário, o papel do ressegurador vai além de apoiar financeiramente: trata-se de contribuir com expertise global, visão estratégica e capacidade de antecipar tendências, colaborando para que seguradoras e demais participantes da cadeia enfrentem o novo ambiente regulatório de forma estruturada e eficiente.

O objetivo deste artigo é apresentar alguns pontos dessa transição que merecem destaque, sobretudo no que diz respeito à relação entre seguradora e ressegurador, ressaltando que o novo momento é também de oportunidades para construir relações mais sólidas, técnicas e eficientes.

A lei dedica um capítulo específico ao resseguro e introduz dispositivos que desafiam práticas consolidadas internacionalmente. Dentre eles, destaca-se a aceitação tácita de resseguro, que prevê a formação automática do contrato caso o ressegurador não se manifeste em até 20 dias contados da proposta. O tema ainda aguarda regulamentação da SUSEP, mas desperta debates por contrariar a prática consolidada no mercado internacional no que diz respeito à aceitação de riscos.

Apesar dessas alterações diretas, o maior impacto para o mercado ressegurador será indireto, reflexo da transformação profunda que a lei impõe às seguradoras, exigindo ajustes que inevitavelmente irão repercutir na relação com seus parceiros resseguradores e exigirão uma readequação dessa relação, que passa por diferentes aspectos. Alguns deles merecem destaque:

1.     Cooperação e transparência

Com prazos mais curtos para a regulação de sinistros, a comunicação precisa ser mais ágil e integrada. O modelo tradicional, em que a seguradora conduz toda a análise de um sinistro para depois reportar ao ressegurador, deixa de ser tão viável, especialmente nos seguros de grandes riscos. Usualmente sinistros desse tipo são mais complexos de serem apurados e demandam uma participação mais significativa do ressegurador. A troca de informações em tempo real entre todos os envolvidos será essencial em casos relevantes para garantir a agilidade necessária. Além da velocidade, a qualidade e a completude dos dados fornecidos também serão determinantes para uma análise eficaz e fundamentada.

As cláusulas de cooperação de sinistros nos contratos de resseguro podem ser revisadas, mas o ponto central é a adoção de uma postura prática de colaboração contínua.

2.     Eficiência operacional

Processos bem definidos e funcionais são a base da eficiência. Quando ambas as partes compreendem claramente seus papéis, as decisões podem ser tomadas com mais agilidade, reduzindo atrasos e evitando fricções. Mais do que agir com boa-fé e diligência, torna-se essencial garantir eficiência nas trocas e nas relações, construindo fluxos conjuntos de trabalho. A expectativa é que seguradora e ressegurador atuem de forma coordenada para evitar atrasos, minimizar litígios e buscar soluções que preservem o equilíbrio contratual e a proteção do segurado.

3.     Conhecimento sobre os parceiros de negócio

Pode parecer óbvio, mas nem sempre é praticado. O novo marco reforça a necessidade de conhecer a fundo a forma de atuação dos seus parceiros de negócio. Isso vale para a relação entre seguradora e ressegurador, mas também para outros players estratégicos da cadeia, como reguladores de sinistro, que passam a ter um papel ainda mais relevante. A confiança continua sendo um pilar fundamental da relação de resseguro, e para sustentá-la será preciso entender como cada um deles está se adaptando às novas regras.

Nesse contexto, “menos é mais” ganha um significado prático: não se trata de ampliar indiscriminadamente a rede de relacionamentos, mas de focar naqueles que demonstram alinhamento, transparência e consistência. Critérios de escolha precisarão ser revistos por ambos os lados, com uma postura mais seletiva e criteriosa na hora de estabelecer ou manter relações comerciais, priorizando qualidade de parceria sobre quantidade de conexões..

4.     Composição de painéis de resseguro

O processo de transição decorrente da Nova Lei pode ser especialmente desafiador quando envolve painéis complexos de resseguro. Nessas estruturas, onde há participação de múltiplos players, o alinhamento de decisões e procedimentos operacionais se torna mais difícil e sujeito a divergências, podendo gerar gargalos e desalinhamentos. Nesse novo contexto, painéis mais simplificados podem ser mais vantajosos em um primeiro momento. Novamente, também será importante a definição prévia de papéis e responsabilidades, a adoção de canais de comunicação eficientes e a formalização de protocolos de decisão que permitam respostas rápidas sem comprometer a segurança técnica e jurídica da operação.

5.     Alinhamento Contratual         

O princípio da boa-fé ainda é o grande norteador da relação ressecuritária, mas os contratos continuarão tendo um papel relevante para delimitar certos riscos, então é certo que os contratos de resseguro precisarão ser revisados para refletir o novo cenário legal. Algumas mudanças são objetivas, como a impossibilidade de estipular cláusula arbitral no exterior. Outras dependerão de fatores como: apetite de cada ressegurador, tamanho e natureza do risco, participação no painel, estrutura do contrato (facultativo ou automático, por exemplo), linha de negócio e demais características específicas de cada operação.

Determinadas cláusulas tendem a ganhar ainda mais relevância e podem demandar ajustes para trazer maior clareza. É o caso da cláusula “seguir a sorte”, que vincula o ressegurador à sorte técnica de subscrição da seguradora; da cláusula de “notificação de sinistros”, que estabelece prazos e procedimentos para avisos entre as partes; e da chamada cláusula de “ECO/XPL”, que delimita a cobertura de obrigaçõesextracontratuais e excesso de Limite da Apólice.

Outras disposições também podem ser revisadas para reforçar alinhamentos e reduzir incertezas, mas o essencial é que o contrato de resseguro seja ainda mais claro, completo e estruturado de forma a minimizar ambiguidades, evitando margens para interpretações divergentes e prevenindo potenciais conflitos.

6.     Intermediação

A transição para o novo marco legal também impacta diretamente a atuação dos brokers de resseguro. Como intermediários entre seguradoras e resseguradores, eles terão um papel central na adaptação das relações contratuais e operacionais.

O broker será peça-chave para assegurar que as informações circulem de forma completa, precisa e tempestiva. Isso inclui acompanhar de perto a adequação dos clausulados, garantir alinhamento de interpretações e apoiar a definição de procedimentos claros para notificações, gestão de sinistros e resolução de divergências.

Ao olharmos para todos os pontos mencionados acima, fica claro que o desafio nessa relação vai muito além de ajustes pontuais. O que está em jogo é a construção de um novo ambiente de trabalho, em uma nova dinâmica na qual cada elo da cadeia desempenha um papel fundamental para garantir que a transição seja bem-sucedida.

É um momento que exige atenção, preparo e adaptação, mas também representa uma oportunidade única para estreitar relações e fortalecer a cooperação entre todos os participantes do mercado. O sucesso dessa jornada dependerá da capacidade de trabalho conjunto, de forma transparente, ágil e alinhada, atuando como parceiros estratégicos.

Mais do que atender às exigências legais, este é o momento de transformar a forma de se relacionar, aumentando o nível de confiança mútua e elevando ainda mais o padrão técnico e operacional do mercado, com relações mais sólidas e resilientes.

(*) Flavia Hammerle Rezende é advogada com quase 15 anos de experiência no mercado de seguros e resseguros. Atuou em escritórios de advocacia no Brasil e em Londres e coordenou áreas de subscrição e jurídico em seguradoras. Atualmente, é responsável pelos departamentos Jurídico e de Compliance da resseguradora Munich Re para a América Latina, conduzindo iniciativas estratégicas de governança, regulação e suporte jurídico em múltiplas jurisdições.

(18.08.2025)