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Sub-rogação nos contratos de seguro: entre a ficção e a realidade

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Por Gustavo de Medeiros Melo

O Direito brasileiro prevê a figura da sub-rogação do segurador nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano (CC, art. 786; STF, Súmula 188). Trata-se de tema comum nas instâncias judiciárias do país, a envolver a assunção pela seguradora de institutos e regras da relação jurídica originária, como prazo prescricional, foro de eleição, limite indenizatório etc.

Em 15.05.2019, a Corte Especial do STJ inseriu um novo ingrediente nesse assunto, enfrentando os reflexos da sub-rogação sobre a convenção de arbitragem pactuada na relação contratual estabelecida entre o segurado e um terceiro. Este, que possivelmente seria demandado pela seguradora sub-rogada, acionou-a perante a Câmara de Comércio Internacional (CCI), em Nova Iorque. Essa demanda foi acolhida pelo Tribunal Arbitral, cuja sentença foi trazida ao Brasil para ser homologada no STJ. Por maioria, ficou decidido que, havendo cláusula compromissória pactuada entre segurado e terceiro, a sub-rogação implica vinculação da seguradora à convenção de arbitragem (SEC 14.930-EX).

O fundamento que abriu as portas do tribunal para essa sentença estrangeira foi o entendimento de que a sub-rogação não ofende a ordem pública nacional, porque prevista no art. 786 do Código Civil.

Pensamos, todavia, que a leitura dessa controvérsia não pode girar em torno somente do art. 786 do Código. O pano de fundo está em saber se houve consentimento expresso das partes para autorizar a jurisdição arbitral (ou anuência tácita pelo comparecimento à arbitragem sem arguição de nulidade). O problema passa pelas barreiras postas para o ingresso da sentença estrangeira proferida em condições ofensivas às normais fundamentais do Direito brasileiro.

No Brasil, a Lei 9.307/96 estabelece a autonomia da vontade como princípio-mor do processo de arbitragem, condição de legitimidade constitucional do referido diploma (STF, Pleno, Ag. Reg. SE 5.206). Para isso, existem anteparos de ordem pública voltados à tutela desse princípio. A falta de consenso inequívoco das partes, seja por ausência de cláusula compromissória, seja pela inépcia de sua previsão, seja por extrapolação de seus limites, configura nulidade da sentença arbitral. A homologação de sentença estrangeira, por sua vez, é condicionada à observância dos limites da convenção de arbitragem, onde se prevê a divergência tratada na sentença (Lei 9.307/96, art. 38 e 39; Convenção de Nova Iorque, art. V).

O sistema jurídico não tolera que alguém seja constrangido por decisão proferida em justiça privada eleita sem o seu consentimento. Também não admite que alguém seja impedido de recorrer ao Poder Judiciário sem ter renunciado expressamente a ele. É verdade que a seguradora calça os sapatos do segurado quando paga a indenização securitária, mas a convenção de arbitragem, que fecha as portas do Estado, não pode ser fruto de uma ficção jurídica.

Nessa perspectiva, não se trata de um problema só de Direito Civil. Os reflexos constitucionais que decorrem da garantia do acesso adequado à Justiça (CF, art. 5º, XXXV e LXXVIII) imprimem uma densidade maior na leitura da ordem pública interna, conforme observou o voto vencido do Min. João Otávio de Noronha.

Para finalizar, é preciso saber o nível de aderência que a tese favorável à sub-rogação absoluta possui com a vida real. O mercado opera em diversos ramos e modalidades de seguros, com múltiplas especificidades ligadas às partes do contrato, os interesses seguráveis, a dinâmica de contratação, os riscos envolvidos, terceiros intervenientes etc.

Há garantias que são prestadas para uma operação específica do segurado, o que aproxima a seguradora da relação contratual firmada entre ele e o terceiro. Isso acontece no transporte de carga (terrestre, aéreo e marítimo). Aqui, o segurador emite a apólice já sabendo quem é o possível responsável por eventuais danos que poderão ser causados ao segurado, como também a forma de resolução de conflitos ali pactuada.

Nesse ambiente, a sub-rogação se opera em cenário de maior proximidade com a relação jurídica originária que o segurador poderá ocupar. Algo similar ocorre no seguro garantia de obrigações contratuais. Antes de emitir a apólice, a seguradora analisa o contrato principal, a situação financeira do tomador da garantia e sua capacidade técnica para executá-lo. O nível de consciência da seguradora sobre o terreno em que está pisando é razoavelmente firme para assumir no futuro a posição antes ocupada por seu segurado.

Todavia, a situação muda de figura em outros ramos da atividade securitária. O seguro contra riscos de engenharia e operacionais se volta contra uma série de eventos possíveis numa planta industrial. Conhecido como all risks, esse seguro garante todos os riscos inerentes à atividade do segurado, exceto aqueles expressa e estritamente apontados pelo segurador na listagem de exclusões da apólice. O valor em risco é atualizado periodicamente e as alterações, para inclusão de novo local ou algum equipamento relevante, são feitas de forma consensual.

A seguradora não sabe e não tem condições de saber a situação particular de todos os prestadores de serviço que se relacionam com o segurado e transitam ali no dia-a-dia das operações. Existe cobertura para bens do segurado em poder de terceiros que não são sequer conhecidos pelo segurador, a não ser depois do sinistro. É enorme a distância entre estes dois polos, o que torna extravagante amarrá-lo a uma cláusula compromissória inserida em contrato que ele sequer conhece e nem teve como conhecer. O seguro discutido no precedente era de riscos nomeados e operacionais.

Pela mesma razão, não é justo que um terceiro seja obrigado a litigar em juízo arbitral com uma seguradora estranha ao seu relacionamento. O contexto que justificou o pacto celebrado com o segurado pode ser completamente diferente do cenário que se apresenta diante dela. Eleição do foro arbitral, ainda mais estrangeiro, com renúncia à jurisdição estatal, é decisão estratégica particularíssima, e todo ato de renúncia comporta interpretação estrita.

É louvável a postura do Tribunal Superior em debater com profundidade os limites da sub-rogação nos contratos de seguro. Mas é importante manter o assunto em reflexão, consciente de que a Corte está prestigiando uma solução fictícia, distante da realidade, ao menos no que toca à dinâmica de um seguro de riscos operacionais.

(*) Gustavo de Medeiros Melo é Mestre e Doutor em Direito Processual Civil (PUC-SP), membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO) e sócio de Ernesto Tzirulnik Advocacia (ETAD)

Fonte: JOTA, em 20.08.2019