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Seguros e Tragédias

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Por João Marcelo dos Santos (*)

“Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada” ― Henry Louis Mencken

Joao Marcelo dos SantosUma grande tragédia tende a revelar uma das características mais nobres dos seres humanos, a empatia. Basicamente, colocamo-nos no lugar de nossos semelhantes e experimentamos, em alguma medida, o sentimento deles.

Mas, a empatia, nada obstante sua beleza e relevância como razão prática de grande parte da evolução da humanidade, não deve turvar a nossa compreensão da realidade.

No caso de uma tragédia como a de Brumadinho, a imensa dor causada pelas centenas de mortes e perdas causadas por evento que, aparentemente, poderia ter sido evitado, leva-nos imediatamente a buscar culpados. E essa busca é, mais do que racional, urgente.

Procura-se apontar erros das diferentes esferas de Governo, da Vale, das seguradoras e de quem mais pareça relacionado à tragédia, de forma rápida e sem ressalvas, para que, desse modo, seja saciada nossa necessidade de uma reação forte.

Algumas respostas têm mesmo que ser rápidas. A revisão das políticas de gerenciamento de risco, em especial no que se refere a barragens semelhantes, é uma delas, assim como a reestruturação e o reforço de determinadas estruturas de fiscalização.

No que se refere aos seguros de responsabilidade civil, alguns equívocos, no entanto, têm sido cometidos, e tendem a encontrar terreno fértil do desconhecimento sobre os seguros em geral e sobre os seguros de responsabilidade civil em especial.

O primeiro deles é dizer que a suposta natureza objetiva da responsabilidade da Vale afasta a necessidade de apuração das causas do acidente e a aplicação de qualquer exclusão prevista nos seguros.

Ora, a responsabilidade de uma seguradora é aquela delimitada pelo contrato de seguro, não a do segurado. Há entre elas uma evidente relação, mas elas não são iguais. Misturar elas duas é empobrecer e tornar inconsistente o debate.

Obviamente, não se trata aqui nem de deixar de garantir acesso ao bolso mais fundo, considerando o porte do segurado. Trata-se de entender o que é o seguro, uma proteção limitada e condicionada do patrimônio do segurado contra suas perdas, no caso, associadas à sua responsabilidade civil.

Outro equívoco é considerar o seguro de responsabilidade civil como uma proteção de terceiros, como recentemente decidiu o Superior Tribunal de Justiça, ao obrigar uma seguradora a indenizar vítima de acidente causado por segurado embriagado.

Diferentemente do que pareceu ser uma das premissas do equivocado voto do STJ, seguros de responsabilidade civil não permitem, salvo hipóteses extremamente raras, que a seguradora se ressarça perante o segurado por ato ou omissão dele passível de gerar responsabilidade civil. Isso porque, obviamente, a cobertura contratada pelo segurado é justamente a perda patrimonial causada por esse tipo de ato ou omissão. Ou seja, no caso, quando a seguradora indenizou o terceiro, ela livrou o segurado, que se embriagou, desse prejuízo.

Sem ampliar demais o debate quanto ao nosso trânsito assassino e causador anual de mais de 100 vezes as mortes de Brumadinho, essa decisão protegeu o segurado, evitando que sofresse perda patrimonial relevante ao indenizar aquele a quem sua irresponsabilidade atingiu. E é claro que essa espécie de leniência é um dos componentes do trágico cenário brasileiro no qual outros segurados “beberão e dirigirão”.

Nossa síndrome do coitadismo, de fato, tem, frequentemente, os beneficiários mais improváveis.

No caso de seguros de responsabilidade civil obrigatórios, existe até o elemento da obrigatoriedade a sugerir o objetivo do legislador de proteger indiretamente o terceiro. Nessa hipótese, no entanto, a própria legislação, ao regulamentar tais seguros, deve estabelecer as suas condições, de forma que ele atinja seu objetivo.

Mesmo a possibilidade de acionamento direto da seguradora por terceiros vitimados pelo segurado não tem como efeito direto a “exclusão das exclusões” estabelecidas pelo seguro. É bem diferente. Trata-se aqui de racionalizar a condução de processos que, efetivamente, podem resultar em responsabilidade da seguradora.

Podemos ignorar os fatos e até distorcê-los, para chegarmos às conclusões que nos parecem mais confortáveis. Mas, a inconsistência cobra seu preço, que pode vir agora ou depois, mas virá.

Nesse contexto, tratar um seguro de forma errada, inclusive colocando seguradoras contra a sociedade, é, independentemente de outros elementos que não podemos evitar, mais uma razão para que tenhamos condições de seguro piores, mais exclusões ou até eliminação ou redução de sua oferta.

Uma tragédia como a de Brumadinho não deixa ninguém indiferente. E tem que gerar aprendizados por parte de toda a sociedade, das empresas e dos Governos. Contudo, propostas e conclusões precipitadas, no melhor cenário, atrapalham esse aprendizado. No pior, geram mais problemas, de que, definitivamente, não precisamos nesse momento.

(*) João Marcelo dos Santos é Sócio Fundador do Santos Bevilaqua Advogados e Presidente da Academia Nacional de Seguros e Previdência – ANSP.

(19.02.2019)