Buscar:

Responsabilidade socioambiental no mercado financeiro e os riscos jurídicos

Imprimir PDF
Voltar

Por Luciane Moessa de Souza (*)

O tema da responsabilidade social de instituições financeiras no mercado bancário já se encontra bastante disseminado no Brasil e nas principais economias do mundo, ainda que o grau de abrangência e profundidade possa não ter alcançado o nível ideal, sobretudo quando se considera que o setor, além de levar em conta os riscos socioambientais, também deveria fomentar atividades econômicas com impactos ambientais ou sociais positivos.

Desde 1992, com a criação da Iniciativa Financeira do Programa de Meio Ambiente da ONU (Unep-FI, na sigla em inglês), justamente na Cúpula das Nações Unidas para o Meio Ambiente realizada no Rio de Janeiro, grandes bancos começaram a despertar para a necessidade de levar em conta potenciais impactos ambientais e sociais negativos dos empreendimentos e projetos por eles financiados. Embora a Unep-FI desde o início abrangesse não apenas bancos, mas também seguradoras e gestoras de ativos financeiros, algum tempo depois o tema chegou com mais força ao mercado de investimentos, com a criação em 2006 dos Principles for Responsible Investments (PRI), também por proposta da ONU, mas congregando, na prática, investidores institucionais (dentre os quais se destacam os fundos de pensão, mas também entram as entidades de previdência privada abertas e as seguradoras, no que se refere à gestão financeira de suas reservas), além de gestoras de investimentos (as “asset managers”) e prestadores de serviços na matéria. E em 2012 (durante a Rio+20), foi a vez dos Principles for Sustainable Insurance (PSI), para fortalecer o assunto no mercado de seguros.

No Brasil, como se sabe, a legislação (artigos 12 e 14, parágrafo 1º da Lei 6.938/1981) dá margem à interpretação de que financiadores seriam corresponsáveis pelos danos ambientais (e uma leitura abrangente de questões ambientais abrange também danos à saúde e segurança do trabalho, saúde pública e a comunidades tradicionais) que venham a ser causados por atividades financiadas. Embora não exista previsão expressa atinente aos bancos no que se refere à responsabilidade civil, existe previsão da figura do “poluidor indireto” (artigo 3º, IV, da referida lei), que pode abrangê-los.

No que toca aos investidores, é claro que, quanto aos titulares dos ativos investidos, existe a limitação da responsabilidade ao valor das quotas ou ações — o que já é um risco altíssimo, o de perda do valor investido, que ocorreria certamente, por exemplo, no caso da tragédia da Samarco Mineração em 2015, se acaso ela fosse uma sociedade anônima aberta e seus sócios fossem investidores comuns, e não outras pessoas jurídicas, como é o caso (a maior mineradora do mundo, BHP Billiton, e a maior do Brasil, a Vale, detêm 50% das quotas cada uma).

Entretanto, cabe ressaltar que os investidores institucionais (entidades de previdência complementar e seguradoras) possuem deveres fiduciários perante os participantes de planos de previdência e aos clientes segurados, no sentido de investir os seus ativos de forma a garantir o pagamento dos benefícios dos planos respectivos e a cobertura contratada dos eventuais sinistros, no caso dos seguros. Caso essa gestão de investimentos ocorra de forma que não tenha a devida cautela em relação a quaisquer fatores de risco relevantes (o que inclui os riscos socioambientais), o investidor está falhando no cumprimento de seus deveres fiduciários.

Na mesma linha, as gestoras de ativos financeiros (as asset managers) também assumem obrigações contratuais perante os investidores institucionais que envolvem o gerenciamento dos riscos de qualquer natureza que possam afetar a rentabilidade dos ativos. Assim, estas últimas respondem perante investidores institucionais e estes últimos perante os participantes dos planos ou segurados no que concerne ao gerenciamento adequado dos potenciais riscos a que se sujeitam os ativos financeiros — o que implica reconhecer que, falhando nos seus deveres de diligência, podem ser demandadas pelos prejuízos financeiros ocasionados. O mesmo raciocínio pode ser estendido para investidores comuns, ainda que não haja contrato individualizado com a gestora de ativos, ao menos no que se refere ao cumprimento de deveres mínimos de diligência.

Nesse cenário, é importante lembrar que existem normas do Conselho Monetário Nacional dirigidas tanto a bancos (Resolução 4.327/2014, cuja aplicação cabe ao Banco Central do Brasil) quanto a fundos de pensão (artigo 10º, parágrafo 4º da recentíssima Resolução 4.661/2018, cuja aplicação compete à Previc) que determinam expressamente que os riscos socioambientais sejam considerados por tais instituições, seja na concessão de crédito (caso dos bancos), seja na realização de investimentos (caso de ambos). A norma de 2014, por sinal, alcança não apenas bancos, mas também corretoras, distribuidoras e quaisquer instituições supervisionadas (ainda que em competência compartilhada com a CVM, a depender do assunto) pelo Banco Central do Brasil.

É evidente que é interesse tanto de agentes econômicos quanto de operadores jurídicos e de toda a sociedade que esses danos sejam, na realidade, evitados. Entretanto, para isso, é preciso um grau de diligência em relação às questões socioambientais que infelizmente está longe de ser a regra no mercado financeiro, o que faz surgirem riscos que eu não chamaria de remotos de responsabilização por omissão no cumprimento de deveres de cuidado ou prevenção.

Não é preciso entrarmos no campo da responsabilidade objetiva (ou sem culpa), que desconsidera por completo o grau de diligência do financiador, a qual é cogitada no caso dos bancos, mas não dos investidores. Nesse tema, vale ressaltar que a defesa da responsabilidade objetiva é basicamente doutrinária (não unânime, naturalmente) e adotada pelo Ministério Público, mas ainda não foi acolhida pela jurisprudência em processos que gerassem eventuais condenações de bancos. O fato é que, partindo para o caminho mais seguro da responsabilização subjetiva (decorrente de uma culpa por ação ou omissão), cabe considerar se o financiador (seja ele concedente de crédito ou investidor) realizou diligências básicas, como verificação do licenciamento ambiental e de seus condicionantes, a verificação do histórico do empreendedor no cumprimento da legislação ambiental e social (mediante apuração de processos administrativos e judiciais, por exemplo) ou uma análise mínima de seu desempenho socioambiental (sistemas de prevenção de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais, sistemas de gerenciamento de resíduos, eficiência no uso de energia e recursos hídricos, para citar os temas mais comuns e relevantes).

Cabe também considerar se a instituição financeira ou investidor cumpre os compromissos que voluntariamente assumiu (iniciativas de autorregulação, como o fato de ser membro da Unep-FI ou signatário do PRI), se usa os bancos de dados publicamente disponíveis (sejam os disponibilizados por entes públicos ou pela própria empresa receptora de recursos financeiros), se cumpre suas próprias normas na matéria, se adota as melhores práticas de mercado (por exemplo, avaliar os riscos específicos de cada setor econômico) — em suma, se faz o que está ao seu alcance (no contexto de sua atividade) para a prevenção dos danos.

Importa ressaltar que as instituições mais avançadas vão muito além da verificação do simples cumprimento de normas e já perceberam que não só a conformidade, mas também a eficiência socioambiental afetam de forma significativa os resultados financeiros dos empreendimentos financiáveis — de modo que existe também um interesse claramente econômico na matéria, no que diz respeito à expectativa de recebimento dos créditos ou de rentabilidade dos investimentos. Um dos temas mais debatidos hoje nesse mercado é o dos riscos financeiros associados às mudanças climáticas.

Mas o fato é que a possibilidade de condenações, seja por reparação de dano ambiental (no caso dos bancos), seja por prejuízos causados aos participantes de planos de previdência ou a investidores em geral, em ambos os casos como decorrência de falhas nos deveres de diligência com relação a riscos socioambientais, também tem uma relevância financeira que não é de ser desprezada. Assim, pode-se dizer, para o bem de todos, que investir na prevenção é, além de tudo, um bom negócio.

(*) Luciane Moessa de Souza é procuradora do Banco Central do Brasil, pós-doutora em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP) e fundadora da Soluções Inclusivas Sustentáveis.

Fonte: CONJUR, em 17.07.2018.