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O quão frágil se tornou a proteção do direito à saúde no Brasil com a recente decisão do STJ

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Por Marco Pontes (*)

Pontes IMG 7808O presente artigo tem a finalidade de fazer um contraponto à corrente da Segunda e Quarta Turma do STJ, que decidiram acerca do rol de procedimentos da ANS como sendo de caráter taxativo. É preciso estabelecer uma linha de tempo para que o leitor tenha compreensão do que aconteceu e porque a decisão é importante e tem causado tanta repercussão na mídia.

Na primeira vez que o tema foi levado a julgamento no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a apreciação foi feita pela Terceira Turma, que teve como relatora a Excelentíssima Dra. Ministra Nancy Andrighi, que concluiu ser o rol de procedimentos da ANS de caráter exemplificativo, ponto de vista o qual corroboro.

A divergência surgiu só depois, na Quarta Turma do STJ, que votou pelo caráter taxativo do rol, indo de encontro à jurisprudência vigente à época. Agora, em junho de 2022, o assunto foi a julgamento novamente pela Segunda Turma do STJ, que desempatou, decidindo em favor do caráter taxativo mitigado do rol de procedimentos da ANS.

Agora as operadoras estão livres para negar aos pacientes qualquer procedimento que não consta no rol de procedimentos obrigatórios da ANS.

Antes de apresentar o contraditório, destaco alguns aspectos importantes que estão em jogo para que o leitor forme a sua opinião.

O artigo 196 da Constituição diz:

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e [aos] serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

O artigo 35 da Lei 9.656/98 dispõe:

A assistência a que alude o artigo 1º desta Lei compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, observados os termos desta Lei e do contrato firmado entre as partes”.

O artigo 1º da Lei 9.656/98 preceitua o seguinte:

“Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos ou seguros privados de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade”.

O ideal seria que o Estado desempenhasse esse papel, mas infelizmente não é isso que acontece. Tal fato ficou evidente quando, em 1998, por meio da publicação da Lei 9.656, o Estado indiretamente declarou não possuir capacidade de atender de forma ampla e eficiente à população brasileira. A Lei 9.656/98 serviu para alguns propósitos: (i) colocar ordem às disparidades praticadas pela indústria privada de assistência médica; (ii) sinalizar para o mercado as condições de operação das empresas prestadoras de serviços médicos; e, finalmente, (iii) atestar a incapacidade do Estado diante dos desafios.

Quando afirmo a incapacidade do Estado em cuidar de forma ampla e eficiente da população, não faço uma crítica ao Sistema Único de Saúde (SUS), que desempenha com louvor um papel heroico para a população, mas o fato é que a proteção do Estado é precária e não parece haver muita luz no fim do túnel para que a situação da saúde pública no Brasil atinja um nível satisfatório à altura dos impostos que toda a sociedade paga.

A ineficiência do Estado faz com que no Brasil o indivíduo pague duas vezes para se proteger melhor. Para viver com dignidade, o indivíduo precisa se planejar desde cedo para complementar o benefício da previdência oficial por meio de uma poupança pessoal. O mesmo ocorre com a assistência médica. Pelas limitações do SUS, é preciso adquirir um plano médico da iniciativa privada.  

A recente comemoração nas mídias sociais de representantes das operadoras e daqueles que apoiaram a posição do STJ pelo rol de procedimentos taxativo foi surreal, especialmente por se tratar de um tema delicado e de grande impacto para a sociedade. Não há dúvidas de que o tema é complexo tanto para a comunidade jurídica quanto para a comunidade científica, a qual nós, atuários, pertencemos juntamente com os médicos e outros atores. De certa forma, o que nos conforta como sociedade é que a decisão do STJ não transitou em julgado, isto é, uma batalha foi perdida, mas a luta continua. Uma luta cuja batalha final deverá ocorrer em campo aberto no STF.

Vamos entender o ponto de vista das operadoras que defendem o rol de procedimentos como sendo de caráter taxativo. As operadoras entendem que somente é possível cobrir aqueles eventos que constam como obrigatórios no rol da ANS, porque estando no rol eles seriam passíveis de taxação, o que necessariamente não é uma verdade. Alegam que dessa forma ter-se-ia maior previsibilidade para quantificar os riscos que estão assumindo, o que, em parte, não deixa de ser uma verdade.

Por outro lado, para que um determinado procedimento seja aceito pela ANS para fazer parte do rol de procedimentos e eventos obrigatórios, ele passa por um processo rigoroso, moroso e burocrático, exigindo comprovação científica. O prazo de atualização do rol da ANS, que já foi de dois anos, caiu para 180 dias, após a entrada da Lei 14.307/2022, graças a um esforço hercúleo da ANS. Esse período seria suficiente para as entidades competentes que validam a efetividade dos métodos de terapias e tratamentos e a ANVISA atestassem a sua efetividade.

Já a lógica que define o rol de procedimentos de caráter exemplificativo se apoia na tese de que na saúde, a cada dia, as necessidades mudam, novas doenças surgem, novos exames são prescritos, novos tratamentos são ministrados, novas técnicas são descobertas e novas tecnologias são desenvolvidas e implementadas. Em resumo, o rol de procedimentos da ANS é dinâmico, não é algo estático.

Contrastando os entendimentos, podemos depreender que o rol taxativo se aproxima do mundo ideal, objeto de desejo das operadoras, enquanto o rol exemplificativo está mais alinhado ao mundo real, afinal, é o médico que tem a capacidade de dizer qual é o tratamento adequado para o paciente e a ciência está em constante evolução. Por uma questão de sobrevivência, o atendimento do paciente não deve ficar condicionado a um assunto de natureza burocrática.

Depreende-se que a lógica do legislador acertadamente foi de que o médico não iria prescrever um exame ou tratamento ao paciente que não fosse necessário. A celeuma com que nos deparamos quanto à definição do rol de procedimentos parece ter sido criada após a manifestação de um dos ministros da corte no julgamento do tema, quando ele criou o termo “rol taxativo mitigado”. Poderia ter sido o rol exemplificativo mitigado, não? Desculpe a ironia, não sou legislador, sou apenas um atuário.

Afinal, qual foi a intenção em usar essa expressão? Não parece soar bem o seu uso, pois ela pode dar a entender que está enfatizando ou privilegiando o caráter do “tempo” ao qual o tratamento do risco deve ser feito, acabando por conceder prerrogativa às operadoras de negar aos consumidores o direito a um determinado procedimento que pode salvar a sua vida ou até mesmo de inviabilizar o direito do consumidor de recorrer à justiça, visto que o posicionamento do STJ serve para orientar os juízes. Assumo a minha perplexidade com a expressão criada. Inclusive fico na dúvida se ela tem amparo constitucional.

Para comprovar a tese do quão é dinâmico o mundo real, apresento as figuras 1 e 2, que fazem parte de um estudo elaborado pela Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora ligada ao departamento de saúde do governo norte-americano que é correspondente à ANVISA. As figuras destacam a aprovação de novos medicamentos.

Figura 1

fig 01 290622

Figura 2

fig 02 290622

Fonte: FDA. Advancing health through innovation: new drug therapy appovals 2021. Center for Drug Evaluation and Research. FDA, 2022. p. 10-11. Disponível em: https://www.fda.gov. Acesso em: 29 jun. 2022.

A seguir apresento as justificativas que me levam à conclusão de que se tratou de um grande equívoco a decisão do STJ. Em primeiro lugar, é importante destacar que a Agência Nacional de Saúde (ANS) define da seguinte forma o rol de procedimentos obrigatórios:

“Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde garante e torna público o direito assistencial dos beneficiários dos planos de saúde, válido para planos de saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999, contemplando os procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças e eventos em saúde, em cumprimento ao disposto na Lei nº 9.656, de 1998”.

Essa definição vai ao encontro do artigo 1º, parágrafo 3º da Lei 9.656/98, que estabelece:

“A assistência a que alude o artigo 1º desta Lei compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, observados os termos desta Lei e do contrato firmado entre as partes”. 

Observem que em momento algum está dito na Lei que a natureza do rol de procedimentos obrigatório é taxativa ou exemplificativa. A Lei traz a definição de rol de procedimentos obrigatórios, sem entrar no mérito de sua natureza. Por quê? Porque na essência o rol é exemplificativo. Ele é o que melhor atende aos artigos 1º e 35º da Lei, retromencionados.

O ministro relator da Segunda Turma que votou pela taxatividade do rol alegou na defesa de sua tese que deve haver equilíbrio econômico contratual e que os tratamentos precisam de comprovação científica, fato que depende do aval da ANS, que, conforme vimos anteriormente, é atualizado a cada 180 dias.

Na condição de atuário, posso expressar a minha opinião e afirmar que o rol de procedimentos é de caráter exemplificativo e, ao mesmo tempo, passível de tarifação. Por quê? Porque todos os procedimentos, estando na lista de procedimentos obrigatórios ou não, entram na estatística das operadoras e, portanto, são passíveis de tarifação.

Para isso, faço um paralelo com uma citação da obra “A lógica do Cisne Negro”, de Nassim Nicholas Taleb. Em uma passagem da obra, ele faz referência à plumagem dos cisnes e afirma:

“Até a descoberta da Austrália, as pessoas do Velho Mundo estavam convencidas de que todos os cisnes eram brancos, crença irrefutável confirmada de forma cabal por evidências empíricas, até que um cisne negro foi avistado por aquelas bandas”.

O que o autor chama de cisne negro são aqueles eventos que possuem três atributos, conforme segue: “(i) é um evento fora da curva, pois escapa do reino das expectativas regulares; (ii) exerce um impacto extremo; e, finalmente, (iii) nos faz engendrar explicações para a sua ocorrência após o fato, tornando-o um evento explicável e previsível”.

Destaco esse terceiro atributo como o principal para afirmar que a alegação de que o rol de procedimentos exemplificativo atenta contra a solvência das operadoras de saúde não é legítima. Na condição de atuário, afirmo que as operadoras incluem os custos dos procedimentos em seus cálculos para tarifar o preço de seus produtos, se não fosse assim elas estariam quebradas. De modo geral, as operadoras estão longe disso, basta uma breve consulta às suas demonstrações financeiras para constatar que o negócio tem sido lucrativo e assim deve ser, não é tolerável entrar em um negócio para não ter lucro. O fato de ter lucro revela uma outra realidade, ou seja, os produtos que são comercializados no mercado, além de pagar toda cadeia produtiva, dão lucro.

Portanto, o rol de procedimentos exemplificativo é taxativo. É taxativo na medida em que é passível de tarifação. Não é da forma que as operadoras gostariam que fosse, isto é, no momento t. O que elas preconizam faz parte do mundo ideal, não é parte do mundo real, a tarifação tem natureza retrospectiva e fica refletida no momento t+1.

Se não estivéssemos em um país com tantas diferenças sociais, como na Suécia, talvez eu poderia considerar o pleito das operadoras de saúde justo em praticar o rol limitado de procedimentos obrigatório da ANS como um produto mínimo para oferecer para a população ou de referência a ser comercializado pela Operadora, juntamente com outros produtos com coberturas mais extensa. Assim, o consumidor poderia optar por adquirir um plano mínimo ou outros decorrentes da incorporação de novos procedimentos. Mas não é o caso. A Lei não permitiu que fosse dessa forma. Essas foram as regras estabelecidas do jogo e que prevaleceram desde que a Lei 9.656/98 está em vigor.

É importante não nos perdemos na semântica. O rol exemplificativo não torna inviável para nós atuários a tarifação adequada dos produtos. Eu posso afirmar que os princípios do mutualismo que têm a finalidade de tornar as incertezas individuais em certezas coletivas são aplicados na tarifação dos planos de assistência médica no cotidiano das operadoras. Tanto é verdade que recentemente a ANS anunciou o percentual de aumento de até 15,5% para os planos de assistência médica individual e familiar, um dos aumentos mais elevados da série histórica, porque as estatísticas foram fortemente influenciadas pelo efeito da pandemia.

A minha afirmação não decorre de uma perspectiva paternalista em relação ao tema, mas por uma questão de empatia e justiça social. É preciso lembrar que a representatividade do universo da população de pessoas com síndromes e doenças raras é menor do que 1% da população mundial. Muitas deles sem necessidade de grandes intervenções ou necessidades médicas. Além disso, nem todos têm acesso à medicina privada, isto é, o universo desse grupamento social não é tão representativo como tem sido alardeado por aqueles que se apegam a uma questão semântica, muito menos que a solvência das operadoras está ameaçada por esse contingente populacional.

Para suprir a necessidade de justiça social é que existe o pacto intergeracional. Ele é uma realidade, os atuários estão bastante familiarizados com o tema. As empresas privadas que contratam os planos para os seus empregados invariavelmente praticam taxa média. Utilizam desse artifício porque consideram justo que os seus empregados mais jovens paguem um pouco mais para viabilizar o plano médico dos empregados mais idosos.

Por que, então, por uma questão semântica, devemos condenar uma parcela da população ao desamparo, como estamos fazendo com os idosos, cujos preços do produto têm se tornado cada vez mais proibitivos?

Na prática, as operadoras de saúde estão dizendo para a sociedade que querem ficar apenas com o risco bom. O risco ruim não interessa, portanto “vão para o SUS – não os queremos aqui”.

Graças ao bom senso e à repercussão negativa na sociedade que a decisão do STJ causou na semana passada em reunião extraordinária da diretoria colegiada, a ANS se apressou em incluir no rol da ANS os portadores de Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Contudo, e os demais? Aqueles que de boa-fé contrataram um plano de saúde para se proteger e vieram a ser vítimas de uma doença cujo procedimento para identificar, tratar e salvá-lo poderá ser recusado pela operadora?

O que eles farão quando seus exames e tratamentos forem negados? Não faço referência àqueles consumidores de doenças preexistentes, refiro-me aos consumidores em geral.

Nesse sentido, a Dra. Nancy Andrighi foi de extremo bom senso quando afirmou:

“não é possível exigir do consumidor que conheça e possa avaliar todos os procedimentos incluídos ou excluídos da cobertura que está contratando, inclusive porque o rol da ANS, com quase três mil itens, é redigido em linguagem técnico-científica, ininteligível para o leigo”. Na realidade são mais de três mil procedimentos.

[...]

“Segundo a ministra, um simples regulamento da ANS não pode estipular, em prejuízo do consumidor, a renúncia antecipada do seu direito a eventual tratamento prescrito para doença listada na CID, pois esse direito resulta da natureza do contrato de assistência à saúde. Considerar taxativo o rol de procedimentos, para a relatora, implica criar ‘um impedimento inaceitável de acesso do consumidor às diversas modalidades de tratamento das enfermidades cobertas pelo plano de saúde e às novas tecnologias que venham a surgir’".

“A magistrada acrescentou que o reconhecimento dessa suposta natureza taxativa também significaria esvaziar completamente a razão de ser do plano-referência criado pelo legislador, ‘que é garantir aos beneficiários, nos limites da segmentação contratada, o tratamento efetivo de todas as doenças listadas na CID, salvo as restrições que ele próprio estabeleceu na Lei 9.656/1998’” (grifos nossos).

Fonte: STJ. Terceira Turma reafirma caráter exemplificativo do rol de procedimentos obrigatórios para planos de saúde. Brasília, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3Nq8hZH. Acesso em: 29 jun. 2022.

Eu estou cada vez mais convicto de que a decisão à qual a Segunda Turma chegou parece contrariar não apenas os princípios constitucionais de acesso à saúde a que fiz alusão, como também aos princípios da dignidade humana e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Não se pode colocar em risco a vida dos segurados, de pessoas com doenças raras em risco por uma questão meramente burocrática. A decisão foi um retrocesso.

Enganam-se aqueles que viram na decisão do STJ a pacificação do tema. A decisão apenas inflamará mais as discussões que continuarão ocorrendo, pois o tema merece mais discussão tanto na esfera jurídica quanto científica. Nesse sentido, nós atuários, que trabalhamos como profissionais responsáveis por taxar/tarifar os planos de saúde que são comercializados no mercado, por dizer quanto a operadora deve dispor no passivo para cobrir as perdas esperadas e quanto deve acrescentar de capital adicional para cobrir as perdas inesperadas provocadas pelo surgimento dos cisnes negros aos quais Taleb fez referência em sua obra, temos um grande desafio: apontar caminhos para superar esses dilemas e desenvolver soluções para a sociedade seguindo o juramento que fizemos por ocasião de nossa colação de grau, ou seja, “servir ao Brasil e à humanidade”.

Eu acredito também que, antes de terem entrado na discussão do rol dos procedimentos, as operadoras deveriam trabalhar em outras frentes, por exemplo, para coibir a fraude, que tem um peso elevado na tarifação, reduzir as margens que tanto impactam o custo final do produto para o consumidor, e ainda atuar no desenvolvimento de novos mecanismos para melhor mitigar o risco do negócio.


(*) Marco Pontes é atuário, consultor e perito atuarial. Possui- mais de 25 anos de experiência profissional. Trabalhou em fundos de pensão, companhias de seguros e foi responsável por fundar e liderar a área de serviços atuariais em duas empresas Big 4. Atualmente é sócio da LGP Consultoria Atuarial, empresa que fundou em 2009.  Whatsapp: (11) 96474-6777 - E-mail: marco.pontes@lgpconsulting.com.br

29.06.2022