O DPVAT e o SPVAT – O fim de um Seguro

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Por João Marcelo dos Santos (*) 

joao 04062024

No dia 16.05.2024 foi publicada a Lei Complementar nº 207, que extinguiu o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por veículos automotores de via terrestre (“DPVAT”) e criou o chamado “Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito (SPVAT)”, que não é um seguro, mas um “benefício social eventual”.

Vale relembrar a história do DPVAT e como chegamos até aqui.

A obrigatoriedade do então Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil dos Proprietários de Veículos Automotores de Vias Terrestres foi trazida pelo Decreto-Lei nº 73, no seu art. 20, alínea “b”, o qual foi regulamentado pelo Decreto nº 61.867/1967, no seu art. 5º.

Tratava-se de um típico seguro de responsabilidade civil obrigatório.

Dificuldades inerentes ao seguro de responsabilidade civil (em especial no tocante à regulação de sinistros e à prova de dolo e culpa) levaram à edição da Lei nº 6.194/1974. Esse novo diploma legal trazia uma sistemática mais simples para identificação e tratamento de sinistros, dividindo-os em ressarcimento de despesas e indenização por danos pessoais.

Essa nova sistemática trouxe mais previsibilidade para a regulação de sinistros, mas ainda persistiam dificuldades em relação à fiscalização do cumprimento da obrigatoriedade.

Em 1986, então, foi criado, pela Resolução CNSP nº 06/1986, o Convênio DPVAT, estrutura sui generis gerida no âmbito da Federação Nacional das Seguradoras – FENASEG. Por meio do Convênio, organizava-se o recolhimento de prêmios, o pagamento de sinistros e outras atividades, como a investigação de fraudes.

Ocorre que, além de ineficiências na estrutura operacional, grande parte dos prêmios arrecadados era distribuída a diversos atores, nomeadamente, SUS, DENATRAN, FUNENSEG, SINCOR e SUSEP. Isso tornava o prêmio do seguro DPVAT objeto de cobiça permanente por todo tipo de entidade, estimulando “debates” sobre a adequação de qualquer atividade relacionada ao seguro.

Ademais, a estrutura de governança do convênio era inadequada, já que a FENASEG sequer era uma entidade sujeita legalmente à supervisão da SUSEP.

Por esses e outros problemas, em 2006, foi criado o Consórcio DPVAT, pela Resolução CNSP nº 154/2006, e a figura da Seguradora Líder.

Assim, finalmente, toda a operação do DPVAT estava centralizada e sob a supervisão da SUSEP.

O Consórcio, inclusive, desde a sua criação e conforme estabelecido pela Resolução CNSP nº 154/2006, passou a englobar motos, ônibus e caminhões (que antes não eram objeto do Convênio), o que reduziu drasticamente a inadimplência na contratação do seguro obrigatório nesses casos.

Em 2012, por força do artigo 6º da Resolução CNSP nº 273/2012, foi estabelecido limite para a distribuição de lucros de 2% dos prêmios arrecadados, visando garantir que a regulação de sinistros ocorresse com a maior tranquilidade possível.

Novos problemas, no entanto, surgiram.

O limite de 2% do prêmio para a distribuição de lucros para as consorciadas passou a ser visto como incentivo para a assunção de despesas, já que elas demandariam o aumento do valor do prêmio, e isso viabilizaria maior distribuição de lucro.

A SUSEP passou então a questionar a legitimidade de despesas da Seguradora Líder, inclusive com forte pressão vinda do Tribunal de Contas da União, órgão do Poder Legislativo. Foram editadas, a esse respeito a Resolução CNSP nº 322/2015 e as Circulares SUSEP nº 574/2018, 580/2018 e 593/2019.

Nesse contexto de dificuldades, em 2019 foi editada a Medida Provisória nº 904, que extinguiu o seguro DPVAT, com base em estudos técnicos que demonstravam que a relação custo/benefício do seguro era insatisfatória, havendo diversos instrumentos de política social e previdenciária que atendiam perfeitamente aos objetivos do seguro DPVAT.

Essa Medida Provisória teve seus efeitos suspensos no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6262, por decisão monocrática do então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski. O fundamento dessa decisão foi a suposta necessidade de lei complementar para tratar do tema, mesmo após alteração da redação do art. 192 da Constituição pela Emenda Constitucional nº 40 de 2003. Curiosamente, esse fundamento, juridicamente equivocado, tornaria inconstitucional a maioria absoluta das regras brasileiras sobre o seguro, inclusive o Código Civil, inviabilizando ainda o Projeto de Lei da Câmara nº 29/2017 (a chamada “Lei de Seguros”).

Com essa suspensão, a SUSEP passou a adotar uma série de ações para gerenciar o tema, e o Conselho Nacional de Seguros Privados através da Resolução nº 399/2020 determinou que o prêmio para o ano de 2021 seria zero, em face de excesso de valores arrecadados nos anos anteriores.

Nesse contexto, em uma Assembleia Geral Extraordinária realizada em 24.11.2020, o Consórcio DPVAT foi extinto, mantida apenas a administração do run-off (sinistros já ocorridos e ainda não avisados ou liquidados).

Foi então, com base na Resolução CNSP nº 457 de 2022 e posteriormente na Lei nº 14.544 de 2023, que a Caixa Econômica Federal passou a administrar o seguro DPVAT, tendo recebido para tanto os recursos “em excesso” acumulados pelo Consórcio.

Tendo acabado esses recursos e sido interrompidos em 31 de dezembro de 2023 os pagamentos de indenizações, voltaram as pressões para uma solução definitiva para o seguro DPVAT, a qual veio com a Lei Complementar nº 207, de 16.05.2024.

Essa Lei extingue o seguro DPVAT e cria um “benefício social eventual” chamado de Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito (SPVAT).

Curiosa e coerentemente, o diploma é uma lei complementar, que pode ser revogada por lei ordinária, já que, independentemente da decisão do STF, não trata de matéria reservada à lei complementar e que não há hierarquia entre lei ordinária e lei complementar (como já reconhecido pacificamente pelo próprio STF nos Recursos Extraordinários nº 377.457 e 381.864).

De qualquer modo, o SPVAT não é um seguro, nem os “prêmios” são prêmios de seguros, mas tributos, criados sem a devida legitimidade constitucional. O “prêmio” do SPVAT parece, de fato, uma contribuição social bastante sui generis. Além disso, não é administrado por uma seguradora, não está baseado em mutualismo e não garante o pagamento de qualquer indenização, a não ser que haja recursos disponíveis.

A conexão entre seguro e SPVAT reside no nome “seguro” e na “deslocada” atuação da SUSEP e do CNSP na sua regulação e na supervisão das atividades da CEF na gestão desse benefício.

Inclusive, a forma de cálculo do prêmio estabelecida no art. 4º da Lei Complementar nº 207/2024 até sugere uma base atuarial que não existe. Isso porque o art. 9º, §2º decreta a inexistência de qualquer dever de pagamento de indenização na medida em que findem os recursos do “fundo mutualista”.

Isso parece inverossímil, e, para que não reste dúvidas, segue a redação clara da regra, que não se refere ao fundo e a seu patrimônio (que poderia ser sucedido ou complementado), mas direta e especificamente aos direitos dos supostos beneficiários do SPVAT: “Art. 9º (...) § 2º O pagamento das indenizações do SPVAT ocorrerá até o limite do patrimônio do fundo”.

Note-se, o risco de os recursos terminarem não está associado somente à “sinistralidade” do SPVAT. Isso porque, entre outras coisas, inclusive a assunção de despesas com terceiros a serem administrados pela CEF, “O agente operador do Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito (SPVAT) poderá repassar à Seguridade Social percentual, a ser estabelecido em decreto do Presidente da República, de até 40% (quarenta por cento) do valor total do prêmio recolhido e destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS), para custeio da assistência médico-hospitalar dos segurados vitimados em acidentes de trânsito.” (NR)(art. 27 da Lei nº 8.212/1991, com redação dada pelo art. 24 da Lei Complementar nº 207/2024).

Se estivéssemos tratando de um seguro, seria como uma seguradora garantir os riscos “a”, “b” e “c”, sendo esse seu objeto único, mas somente enquanto houver dinheiro, e considerando que os controladores podem decidir discricionariamente pela doação de ativos garantidores a empresas coligadas. Uma vez findos os recursos, os segurados deixariam de ter qualquer direito. Veja-se que não se trata isentar a seguradora de responsabilidade, mas de afirmar que os segurados e beneficiários não têm mais qualquer direito contra quem quer que seja.

Se tal medida fosse razoável, seria a solução simples e universal para quase todos os processos de insolvência de seguradoras e a quase extinção da necessidade jurídica de qualquer regra prudencial baseada na inafastabilidade da obrigação de uma seguradora de cumprir obrigações perante segurados e beneficiários. Um mutualismo “à brasileira”.

Nesse contexto, por fim, a referência ao papel de “agente operador” exercido pela CEF parece tentar “suprir”, sem sucesso, na perspectiva de se tratar o SPVAT de um seguro, a “ausência” do agente responsável (que deveria ser uma seguradora ou o estado, no caso de um seguro estatal, mas jamais a CEF). Só não é real ausência de um agente responsável segurador privado ou público porque não se trata de um seguro. Na verdade, trata-se de recursos que, “enquanto não findarem” e se o Poder Executivo assim quiser, serão utilizados para vários fins, entre eles (i) uma infinidade de repasses pré-fixados, (ii) pagamentos de terceiros, (iii) repasses decididos por discricionariedade do Poder Executivo e, finalmente, (iv) indenizações.

Em suma, para quem queria um seguro substituto do DPVAT ou o próprio DPVAT com ajustes, é hora de luto. Não temos mais o seguro DPVAT. Independentemente disso (e não em substituição), temos um novo e precário benefício social financiado pelos proprietários de veículos automotores, benefício esse cujo nome pode dar algum conforto aos saudosistas.

(*) João Marcelo dos Santos é Sócio Fundador do Santos Bevilaqua Advogados Associados, ex-Diretor e Superintendente substituto da Susep, ex-Presidente da Diretoria e atual Vice-Presidente do Conselho Superior da Academia Nacional de Seguros e Previdência e Membro do Board da Global Insurance Law Connect, rede mundial de escritórios de advocacia especializados em seguros.

(04.06.2024)