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Novos modelos de distribuição, segurança cibernética e conduta desafiam reguladores e autorreguladores em todo o mundo

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José Carlos Doherty, superintendente-geral da ANBIMA, fala sobre as tendências que estão orientando a criação e o aprimoramento das regras para os mercados financeiro e de capitais, e como esse movimento se reflete nos trabalhos da Associação

Com as inovações tecnológicas batendo à porta, uma série de questões regulatórias chamam a atenção de reguladores e autorreguladores dos mercados financeiro e de capitais no mundo. São aspectos que envolvem riscos, tendências e vulnerabilidades, muitos deles de abrangência internacional, que estão pautando os trabalhos de entidades como a Iosco (Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários). Muitos destes temas também estão na nossa pauta, refletida no plano de ação para 2019. São assuntos relacionados a novos modelos de distribuição de produtos de investimento, segurança cibernética e conduta. Tudo isso sem desconsiderar o contexto macroeconômico mundial e suas implicações sobre os mercados.

Em entrevista ao Informativo ANBIMA, José Carlos Doherty, nosso superintendente-geral, detalha esses movimentos que desafiam reguladores e autorreguladores ao redor do mundo. Ele discorre sobre os temas com o olhar de quem acompanha as discussões internacionais sobre o assunto, como membro da Iosco. Confira o bate-papo na íntegra.

Quais são os atuais riscos e tendências observadas pelos reguladores ao redor do mundo?

Há uma série de riscos e tendências que requerem atenção não só dos reguladores, mas também do mercado. Eles podem ser divididos de duas formas: os desafios do ambiente macroeconômico mundial e aqueles ligados aos produtos e atividades. Com relação ao primeiro, temos políticas monetárias divergentes e tensões geopolíticas ao redor do globo, que afetam os negócios diretamente. No caso dos desafios regulatórios das atividades e dos produtos do mercado, há tendências que exigem um trabalho de criação ou de aprimoramento da regulação. Os criptoativos, por exemplo, vêm crescendo muito e assim demandam maior clareza sobre o perímetro regulatório para lidar com eles. Apesar de alguns países terem avançado com a criação do sandbox (mecanismo regulatório que permite aos players testarem propostas inovadoras em mercado, como forma de estimular o desenvolvimento), a prática ainda não é disseminada de forma harmonizada entre os reguladores. Há também os investimentos passivos que ganharam mais espaço, especialmente com o boom dos ETFs (Exchange Traded Funds). Nestes produtos, em alguns casos, quem controla os resgates e aplicações são algoritmos, mas a inteligência artificial nem sempre é capaz de ponderar todas as variáveis, como os movimentos de manada. Merece destaque, ainda, a distribuição de produtos por robô-advisors.

Como o cenário macroeconômico tem influência sobre os mercados?

Como mencionei, há políticas monetárias divergentes no mundo. Ao mesmo tempo em que o mercado norte-americano estava em processo de alta da taxa de juros, por exemplo, o europeu vive patamares mais baixos. Essa divergência de políticas monetárias impacta o fluxo de capital e também colabora para aumentar as dívidas corporativas nos principais mercados globais. São movimentos que influenciam o mercado de capitais, pois geram volatilidade e, por conta disso, afetam os investimentos de longo prazo. Temos, ainda, um ambiente de tensões, como o Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia) e a disputa comercial entre os Estados Unidos e a China, que levam a preocupações sobre uma possível fragmentação dos mercados internacionais. Paralelamente, há economias emergentes como Brasil, Rússia, Índia, África do Sul, que são mais vulneráveis e operam com mais volatilidade do que as mais desenvolvidas. Isso afeta a precificação dos ativos, trazendo insegurança aos investidores.

Quais são as principais preocupações dos reguladores quanto a inovações e avanços tecnológicos?

Recentemente, vemos inúmeros avanços relacionados à inovação. Isso abre oportunidades, como lançamento de produtos com mecanismos mais ágeis e redução de custos para os investidores. Também há riscos, uma vez que esses avanços ainda não estão totalmente regulamentados. O robô-advisor é um bom exemplo: traz facilidade e comodidade ao investidor por meio de uma plataforma com inúmeros produtos, mas às vezes não ficam claras as distinções entre as funções de aconselhamento, gestão, consultoria e alocação de recursos. Na plataforma essas atividades podem “parecer” uma coisa só. No entanto, a regulação tem exigências distintas para cada uma delas e é preciso cobrir todas. É necessário evoluir e estabelecer um marco regulatório, mas que seja neutro para não inibir os benefícios que esses novos modelos de negócio trazem. Outro exemplo de inovação que envolve os reguladores e os agentes de mercado é a segurança cibernética. Com a digitalização e automatização de várias atividades, que funcionam via aplicativo, ou que são hospedadas na nuvem, o mercado está cada vez mais sujeito a questões de segurança cibernética. Esse assunto já é acompanhado, mas a tendência é que ganhe cada vez mais atenção.

Dez anos depois da crise financeira de 2008, há uma preocupação da comunidade reguladora internacional em avaliar o quão adequada foi a resposta pós-crise. Dá para fazer algum balanço de quais foram os impactos não intencionais das regras e o que está sendo feito para mitigá-los?

Difícil fazer um balanço, pois depende muito de cada país especificamente, uma vez que cada um avançou de maneira diferente. No entanto, de forma geral, as questões relacionadas à conduta dos profissionais evoluíram bastante nos últimos dez anos e os reguladores se debruçaram sobre o tema com afinco. Houve um movimento no mundo todo para melhorar o marco regulatório relacionado à conduta dos agentes e também ao aprofundamento da troca de informações entre os reguladores de mercado de capitais. Essa melhora na interação foi percebida como essencial, uma vez que cada vez temos mais produtos globais e menos locais. Hoje um investimento é lançado na Alemanha e distribuído em Hong Kong. Também é necessário avançar na regulação das instituições sistematicamente importantes, conhecidas como “too big to fail”. Nos últimos anos, o debate foi voltado ao sistema bancário e agora passou para o mercado de capitais com foco em temas como liquidez e alavancagem dos produtos de investimento. Paralelamente, está acontecendo um movimento de revisão dos impactos não intencionais das obrigações que foram criadas no pós-crise, principalmente nos mercados de derivativos de balcão.

O Brasil foi um dos países que sofreu menos impacto na crise mundial, até por ter um mercado fortemente regulado e pouco alavancado. Esse movimento de reavaliação dos impactos deve ser menor por aqui?

Não, muito pelo contrário. Esse movimento é algo natural em todos os países. Primeiro tivemos um endurecimento das regras e agora há um esforço por redução de custos, sem perder a eficiência. Inclusive, nestes mais de dez anos pós-crise, vimos com mais frequência os reguladores e o mercado discutirem juntos a implementação de novas regras e a aplicabilidade delas. Esses diálogos também são efeitos do pós-crise. No Brasil, o relacionamento entre regulador e autorregulador é muito forte e estamos, inclusive, fazendo esse trabalho de revisão junto com a CVM. Enquanto a autarquia é responsável por rever suas instruções, nós fazemos a revisão via autorregulação.

O debate sobre aspectos relacionados a conduta dos profissionais de mercado ganha ênfase com o avanço de novos modelos de negócios, como os robô-advisors. Como monitorar as novas formas de distribuição de forma a não inibi-las, mas garantindo, ao mesmo tempo, proteção ao investidor?

O regulador tem a responsabilidade de deixar bem claro o tipo de atividade que cada inovação exerce, para que seja possível o cumprimento das regras. No Brasil, por exemplo, há um caso específico a ser aprimorado, que são as exigências para os agentes autônomos. O modelo de distribuição destes players se expandiu ao longo dos anos e foi importante para democratizar o acesso aos investimentos, mas agora é preciso delimitar melhor suas atividades para que evolua cada vez mais de forma sustentável. No entanto, quando falamos dos investidores, é importante ressaltar que nem tudo deve ser responsabilidade dos reguladores. Quem lida com o investidor é o agente de mercado, então a responsabilidade também deve passar pela área de compliance das instituições. Caso contrário, o regulador ficará para sempre como tutor dos investidores e a instituição como mera cumpridora de regras. Os reguladores, inclusive, estão começando a exigir que as regras de compliance das instituições levem em consideração a proteção e a informação do investidor para que assumam cada vez mais responsabilidade.

No ano passado, foi sancionada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que impactará diversas indústrias, inclusive a de investimentos. O mercado está preparado para lidar com as mudanças?

A lei de proteção de dados começou pela Europa no ano passado e repercutiu no mundo todo. No Brasil foi sancionada em agosto, quando começou o prazo de 18 meses para entrada em vigor. Sem dúvida haverá impactos no mercado, por isso temos dois objetivos como associação: orientar o mercado sobre como lidar com a nova lei dentro de suas casas e aprender a tratar internamente as informações que recebemos dos associados, que formam as nossas bases de dados. É um grande projeto sobre o qual vamos nos debruçar e tende a ganhar relevância.

Como estas tendências regulatórias internacionais se refletem no trabalho da ANBIMA?

O nosso plano de ação está ligado a muitas dessas preocupações e tendências que estão na mira dos reguladores internacionais. No que se refere à revisão de custos, temos como lição de casa mapear tudo que pode oferecer ganho de eficiência na indústria de fundos. No campo da distribuição será desenvolvida uma proposta para delimitar de forma mais clara os papéis e as responsabilidades de cada elemento da cadeia, por exemplo, os agentes autônomos. No quesito inovação, trabalharemos em conjunto com outras entidades para compartilhar testes e informações de cibersegurança. O objetivo é proteger não apenas as instituições, mas aumentar a resiliência do sistema financeiro como um todo. Paralelamente, serão promovidos debates sobre qual é o perímetro regulatório ideal para novas tecnologias, como open banking, DLT (Distributed Ledger Technology) e criptoativos. Conduta também é um dos norteadores do nosso plano de ação e as iniciativas estão voltadas para dois caminhos. Um deles é fortalecer a verificação do cumprimento dos princípios éticos dos associados e das instituições que seguem as regras da autorregulação. O outro envolve um diagnóstico e uma proposta de aprimoramento da qualificação dos profissionais de administração de recursos de terceiros.

Fonte: ANBIMA, em 13.02.2019.