Novas regras de seguros e resseguros – uma mudança de rumo

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João Marcelo dos Santos, Sócio Fundador do Santos Bevilaqua Advogados, Ex-Diretor e Superintendente Substituto da SUSEP e Presidente do Conselho de Acadêmicos da Academia Nacional de Seguros e Previdência

Ambientes regulatórios, em geral, e em especial em mercados menos maduros, como o mercado brasileiro de seguros e resseguros, dificilmente evoluem de forma linear. Diferentemente, quando avançam, o fazem cambaleantes, com passos à frente e atrás e períodos de silêncio.

A publicação da Resolução CNSP nº 322/2015 parece enquadrar-se positivamente nesse cenário. Isso na medida em que, após mudanças muito criticadas, foram flexibilizadas as restrições a operações intragrupo e a reserva de mercado. O regulador de seguros e a SUSEP mostraram, assim, a preocupação em tentar aproximar a legislação brasileira, pelo menos no que se refere ao grau de abertura, da existente em mercados mais desenvolvidos.

1. A abertura do mercado de resseguros brasileiro

O dia 19.12.2007 foi uma data histórica para o mercado brasileiro de seguros. Foram publicadas as normas do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP – (Resoluções de nºs 168 a 173) que, nos termos da Lei Complementar nº 126/2007, regularam a atividade de resseguro e a forma de atuação, no Brasil, das resseguradoras locais e estrangeiras (admitidas e eventuais) e de corretoras de resseguro.

Voltando no tempo, o primeiro grande marco do mercado brasileiro de seguros foi a criação do então denominado Instituto de Resseguros do Brasil – IRB, em 1939. Aquele foi um momento de grande relevância para a economia do país, no qual a forte industrialização e a modernização das relações sociais demandavam uma maior oferta de seguros e resseguros como instrumento de proteção.

Nesse contexto, a atuação do IRB como regulador e ressegurador monopolista foi fundamental para o mercado de seguros brasileiro e para o fortalecimento das empresas aqui atuantes.

Algumas décadas depois, em 1966 foi criada a autarquia cuja função era regular e supervisionar o mercado brasileiro de seguros, a Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, permanecendo a regulação do resseguro a cargo do IRB. Iniciou-se a separação entre as funções de agente econômico e de ente regulador e supervisor da iniciativa privada, embora a SUSEP tenha efetivamente se integrado em uma estrutura na qual predominava o dirigismo estatal.

A partir da década de 80, ficou evidente a necessidade da mudança, pois a sociedade somente tinha acesso a produtos caros e rigidamente regulados inclusive no que se refere a preços. Já se sentiam claramente os efeitos negativos de um mercado de seguros fechado tanto para a participação do capital estrangeiro como para o contato direto com o mercado internacional de resseguros.

No final da década de 80, a regulação passou por grandes transformações. Houve um primeiro surto de desregulamentação (com a liberação dos valores de prêmios e comissões de corretagem, entre outras medidas), a SUSEP ganhou mais relevância e a crescente modernização da atividade de seguros tornava ainda mais evidente (i) o arcaísmo da visão que confundia a regulação com o planejamento pelo Estado da atividade econômica e (ii) a inadequação do monopólio do resseguro.

De fato, o nosso arcabouço legal e o IRB monopolista e regulador começavam a representar um fóssil da era em que o Estado “era” a economia, e eventualmente permitia, em parcerias ou sob sua vigilância muito próxima, a atuação de agentes privados.

Nesse contexto, aceleraram-se as transformações, cujos principais elementos foram:

A partir de 2008, com a nova regulação, a seguir comentada, o mercado de seguros passou a incluir a atividade de resseguros. A proteção e o dirigismo estatal deram lugar à competição e à busca da eficiência e a sociedade passou a ter à sua disposição um arcabouço legal e regulatório mais coerente e moderno, imprescindível para o desenvolvimento do seguro e do resseguro.

2. Da regulação original do resseguro no mercado brasileiro – um bom começo

As Resoluções do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP – de nºs 168 a 173, aprovadas no final de 2007, resultaram de processo de audiência pública no qual a sociedade e agentes do mercado tiveram ampla oportunidade de participação.

Foram previstos três tipos de resseguradores para os quais riscos do mercado brasileiro de seguros podem ser transferidos: locais, admitidos e eventuais.

O ressegurador local deve ser uma empresa constituída no Brasil, cujo funcionamento deve obedecer à legislação securitária brasileira (com estrutura semelhante a uma seguradora e diferenças pontuais em relação ao valor do capital e outros aspectos) e cujo objeto deve ser exclusivamente o resseguro.

Já os resseguradores admitido e eventual são empresas estrangeiras cadastradas perante a SUSEP, com patrimônio líquido no valor mínimo de, respectivamente, US$ 100.000.000,00 e US$ 150.000.000,00, que devem ter um procurador domiciliado no Brasil[1].

O ressegurador admitido deve, adicionalmente, constituir um escritório de representação no Brasil, previamente autorizado pela SUSEP e denominado como tal, cuja atividade exclusiva deve ser a representação do ressegurador admitido.

O ressegurador admitido deve também manter uma conta vinculada à SUSEP no valor mínimo de US$ 5.000.000,00 ou, no caso de atuar exclusivamente no resseguro de vida, de US$ 1.000.000,00. Esses valores poderão ser maiores, conforme o rating do ressegurador e o volume de operações mantido no país. Nessa categoria foi cadastrado o Lloyd´s.

As cedentes brasileiras (seguradoras e resseguradores locais) somente poderão ceder riscos em operações de resseguro e retrocessão para resseguradores locais, admitidos e eventuais, com ou sem a intermediação de corretores de resseguros.

As operações em que a cedente seja ligada ou pertença ao mesmo grupo da empresa cessionária deveriam ser informadas à SUSEP, que supostamente deveria ter editado regulamentação tratando do tema (o que nunca ocorreu).

A SUSEP deverá ser informada sempre que a cedente alcançasse determinados níveis de concentração de riscos colocados em um único ressegurador admitido ou eventual.

No que se refere à colocação de riscos em operações de resseguro, foi estabelecida, entre outras, uma regra de preferência, que não se aplicava a retrocessões feitas por resseguradores locais.

Não se tratava de “reserva” e sim, efetivamente, de “preferência”. Isso significava que o ressegurador local somente tinha direito preferencial a subscrever riscos de resseguro na medida em que, havendo aceitação do risco por resseguradores admitidos e eventuais, aceitasse condições de contratação e preço iguais ou mais favoráveis do que as condições dos resseguradores admitidos e eventuais.

A seguradora brasileira devia oferecer os percentuais de 60% (até 16.01.2010) e 40% (após aquela data) de cada cessão de risco a resseguradores locais. Esses tinham 5 dias (para contratos automáticos) e 10 dias (para contratos facultativos), para formalizar a aceitação total ou parcial de oferta, sendo o silêncio considerado como recusa.

Passados os primeiros 3 anos da abertura, como não poderia deixar de ser, imperfeições e necessidades de ajustes surgiram, e a reação, totalmente errada na forma, no conteúdo e na força, foi a edição das Resoluções CNSP nºs 225 e 232.

3. Resoluções CNSP nº 224 e 225 – um retrocesso

No final do ano de 2010, foram publicadas as Resoluções nºs 224 e 225 do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP. O impacto dessas novas regras, em razão tanto do seu conteúdo, como do seu prazo para entrada em vigor e especialmente da forma como foram elaboradas, não poderia ter sido pior para a imagem do Brasil e do mercado de seguros e resseguros brasileiro.

A abertura do mercado brasileiro de resseguros foi um evento muito importante, tanto para em nível nacional como global. E a forma como se deu, bem como os seus resultados, foram excepcionais, graças principalmente à capacidade e dedicação da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP – e à sua abertura para o diálogo como os agentes do setor privado.

Nesse contexto, o Brasil aproveitou momento de grande exposição para mostrar ao mercado global de resseguros o amadurecimento de nossa estrutura de supervisão e regulação e mesmo do país como um todo.

Tal fato, juntamente com as perspectivas de crescimento econômico do Brasil, transformou o interesse do mercado internacional em ato e decisão de investimento. Assim, diversos resseguradores registraram-se no Brasil como locais, admitidos e eventuais, gerando empregos e dinamizando o próprio mercado de seguros.

Contudo, tudo isso foi severamente prejudicado pelas Resoluções CNSP nº 224 e 225, as quais, respectivamente, (i) vedaram a realização de toda e qualquer operação intragrupo de resseguro ou retrocessão com resseguradores domiciliados no exterior (posteriormente a Resolução CNSP nº 232 estabeleceu um limite máximo de 20% para “cada cobertura contratada”) e (ii) eliminaram o sistema de preferência, substituindo-o por uma reserva de mercado.

Sem entrar no mérito de sua legalidade, em face dos termos da Lei Complementar nº 126/2007, tais regras alteraram a estrutura básica da legislação que deu base ao planejamento e à constituição e registro de todos os resseguradores locais, admitidos e eventuais.

Além disso, tais mudanças, que não foram objeto de qualquer discussão com os agentes privados do mercado de seguros e de resseguros, passaram a ter efeito em menos de 4 meses após sua publicação.

Chegou a ser noticiado que se buscava evitar a realização de operações supostamente irregulares ou abusivas, tanto no que se refere às operações intragrupo como à oferta preferencial aos resseguradores locais.

Nesse contexto, se existiam operações que violavam a legislação, os agentes ativos dessas operações poderiam ter sido objeto de fiscalização por parte da SUSEP, que detém, para tanto, todos os instrumentos e poderes.

Por outro lado, embora se compreenda que a atividade de regulação pode estar sujeita a urgências e uma dinâmica de discussão própria, é extremamente preocupante a edição de normas tão estruturais e com impacto praticamente imediato e sem qualquer discussão.

O resultado foi a perplexidade dos agentes privados, a quebra da segurança jurídica e da confiança que se estabelecera ao longo dos anos antecedentes.

Não se pode deixar de dizer que o mercado de resseguros vinha se consolidando também como instrumento de efetivo desenvolvimento do mercado de seguros. Isso com efeitos diretos sobre o valor que o seguro agregava à dinâmica da economia, inclusive quanto ao oferecimento de capacidade, desenvolvimento de novos produtos, aumento de oportunidades de trabalho e qualificação dos profissionais que vinham sendo treinados, repatriados e trazidos para o país.

Tão grave quanto o método utilizado para edição das normas em questão é a pouca clareza dos seus objetivos.

Não se pode sequer imaginar que o objetivo era o benefício ao consumidor final de seguros, seja ele pessoa física ou pessoa jurídica, pequena ou grande. Isso porque o fim da preferência e sua substituição por uma reserva de mercado resultaram em aumento geral de custos para a indispensável colocação de riscos no exterior.

Se, por outro lado, a pretensão era a proteção do mercado local de resseguros, a proibição das operações intragrupo de retrocessão indicou incompreensão, por parte do Governo, da atuação dos grupos globais que aqui se instalaram e/ou investiram mais intensamente nos últimos anos. Tais grupos confiaram nas regras anteriores, com base nas quais desenharam seus planos de negócios (previamente apresentados e aprovados pela SUSEP) e projeções de rentabilidade no longo prazo. Não faz sentido imaginar que as operações de retrocessão e resseguro desses grupos eram desconhecidas, abusivas ou de qualquer forma reprováveis, na medida em que foram permitidas justamente como incentivo à instalação e ao investimento deles aqui.

Não é demais lembrar que embora o mercado brasileiro tenha enorme potencial, o peso da economia brasileira e principalmente da atividade de seguros e resseguros dentro do mercado global ainda é pequeno, não se comparando, por exemplo, com o mercado chinês.

Logo, a estabilidade e a confiabilidade das regras é extremamente necessária para a atração do capital e da capacidade internacional, sem o qual perdemos a capacidade de acelerar mais o nosso desenvolvimento.

Obviamente, nada obstante as questões acima colocadas, o mercado de seguros sobreviveu. Contudo, como ocorreu diversas vezes na nossa história, perdemos a oportunidade de aproveitar seu potencial de crescimento, desenvolvimento e agregação de valor às relações econômicas em geral.

4. Resolução CNSP nº 325 – uma tentativa de passo à frente

A publicação da Resolução CNSP nº 325 em julho de 2015 (que ratificou e ajustou a redação da Resolução CNSP nº 322) pode ser considerada uma tentativa de retorno da SUSEP à busca de racionalidade e segurança nas suas ações.

Os limites para colocações de risco em operações intragrupo serão progressivamente aumentados. Até 31 de dezembro de 2016, o limite de 20% será mantido. Esse limite será aumentado para 30% a partir de 1º de janeiro de 2017, 45% a partir de 1º de janeiro de 2018, 60% a partir de 1º de janeiro de 2019 e 75% a partir de 1º de janeiro de 2020 .

Além disso, a reserva de mercado foi substituída por um sistema dual de (i) uma oferta preferencial de 40% dos contratos para os resseguradores locais e (ii ) a redução progressiva da reserva de mercado (40% até 31 de dezembro de 2016, 30% até 31 de dezembro de 2017, 25% até 31 de dezembro de 2018, 20% até 31 de dezembro de 2019, 15% até 31 de dezembro de 2020).

Um elemento positivo claro é o estabelecimento de prazos longos de adaptação (4 anos), algo comum em mercados mais desenvolvidos e raramente adotado no Brasil.

Pode-se até duvidar da manutenção da norma ao longo de tantos anos e eventualmente enxergar aqui o risco de se tratar de medida cuja eficácia futura não foi a maior preocupação do regulador (mas tão somente a produção de uma “boa notícia”).

De qualquer modo, acreditando que o objetivo da norma é realmente garantir uma transição suave entre o regime existente e as futuras regras, o estabelecimento de prazo tão excepcionalmente longo (para os padrões brasileiros) é, no mínimo, a tentativa de mudar o nosso paradigma.

A redução da restrição às operações intragrupo é também elogiável. Conforme acima exposto, a restrição de 20% para operações entre companhias ligadas foi uma tremenda quebra de expectativa, e a possibilidade de aumento do volume e do valor das operações intragrupo é sem dúvida positiva.

Fica a crítica de que a manutenção da restrição no longo prazo, ainda que em percentual menor, mas incidente sobre cada cobertura, obriga as cedentes à manutenção de esquemas complexos de controle e colocação de risco no exterior. Mais um exemplo do chamado “Custo Brasil”, com o que não deveríamos nos acostumar e conformar. De qualquer forma, trata-se de cenário melhor do que o anterior.

O mesmo se pode dizer da redução da reserva de mercado. Se o regulador entende que a reserva de mercado não é positiva, nada obstante os seus piores efeitos tenham sido mitigados pela edição da Resolução CNSP nº 241 (que regulou situações de falta de capacidade e/ou interesse do mercado local para aceitação de determinados riscos), então o ideal teria sido eliminá-la.

A manutenção da reserva de mercado, em conjunto com a preferência (não podem ser eliminadas ambas, em razão do que dispõe a Lei Complementar nº 126), estabelece, entre tantos, mais um controle a ser mantido pelas cedentes brasileiras. Não é desprezível o custo associado a esses controles, tanto que se refere à sua compreensão como à sua implementação e manutenção.

Vale notar ainda a incerteza quanto à forma de implementar a oferta preferencial, já que todas as regras existentes na primeira fase da abertura do mercado de resseguros, inclusive, por exemplo, condições para a oferta e prazo de resposta dos resseguradores locais, foram revogadas pela Resolução CNSP nº 225 e não foram repristinadas pela Resolução CNSP nº 325. Isso criou o que pode ser considerado, em certos aspectos, um espaço de excessiva indeterminação.

Por fim, a criação de uma Comissão Consultiva no âmbito do CNSP com a finalidade de propor medidas voltadas a corrigir eventuais assimetrias entre a regulação brasileira de resseguros e as melhores práticas globais, independentemente dos resultados que vier a ter na prática, evidencia a intenção do regulador de escutar o mercado e respeitar as suas instituições, particularmente a Federação Nacional de Empresas de Resseguros, constituída como resultado do novo ambiente regulatório trazido pela abertura do mercado de resseguros.

5. Conclusão

Entre aspectos positivos, negativos e dúvidas, a edição da Resolução CNSP nºs 322 evidenciou a disposição da SUSEP e do Governo de ajustar a legislação, corrigindo erros e avançando na implementação de regras para o mercado de resseguros compatíveis com a prática internacional, em especial promovendo uma maior abertura do mercado local.

Certamente isso não será suficiente para, por si só, recuperar o grau de confiança segurança existente imediatamente antes da edição, no final de 2010, das Resoluções CNSP nº 225 e 232. Entretanto, pelo menos, trata-se de um primeiro passo e do aparente reconhecimento de que aquelas mudanças abruptas na direção do fechamento do mercado mereciam alguma espécie de revisão.


1 No caso do ressegurador eventual, esse procurador pode ser uma seguradora ou mesmo um ressegurador local.

Fonte: Artigo publicado originalmente na revista Opinião.Seg nº 11 - Outubro de 2015 - Páginas 65 a 70.