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“De raiz” ou “Nutella”?

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Por Gloria Faria (*)

gloria faria 2019As mudanças no Coaf me fizeram lembrar das conversas com meu amigo coronel Junqueira. Orgulhosíssimo de seu passado no Exército, o ícone do seguro gaúcho costumava dizer que por ocasião de mudanças no comando do quartel, sempre prevaleciam as regras da cavalaria: trocam-se os móveis e pintam-se os imóveis.

Ontem, no “quartel” brasileiro foi um pouco diferente. Falo das grandes alterações trazidas pela Medida Provisória nº 893 /19 que criou a UIF – Unidade de Inteligência Financeira em substituição do antigo Coaf – Conselho de Controle das Atividades Financeiras, agora alocado no Banco Central.

O Coaf foi criado pela Lei 9.613/98 que dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei.

O referido Conselho de Controle de Atividades Financeiras nasceu com a incumbência de apurar as ocorrências suspeitas de prática de lavagem de dinheiro, sem prejuízo de competência dos demais órgãos e entidades governamentais envolvidas nesse combate [1] e com o poder de requisitar informações dos sujeitos obrigados, desde que autorizado pelo Poder Judiciário [2] e, se ao fim das investigações concluir pela existência de crimes previstos no projeto ou fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito, deverá ele comunicar às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis [3].

É bom que se esclareça que, antes da apresentação do Anteprojeto de Lei no Congresso foram ouvidos diversos membros e entidades representativas do setor público e privado, das áreas financeira, industrial e de outras, e a sociedade civil para uma discussão ampla e democrática sobre a criação do que viria a ser um efetivo instrumento de combate ao crime organizado e suas conexões.

Ainda que, em princípio, a MP 893/19 que transforma o Conselho de Controle das Atividades Financeiras na Unidade de Inteligência Financeira não tenha alterado o escopo da Lei 9.613/98 as mudanças estruturais na entidade são significativas.

A Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro, que veio em resposta a compromissos internacionais firmados pelo Brasil, a começar pela Convenção de Viena de 1988, ao longo de seus vinte anos de vigência sofreu várias atualizações. A grande maioria serviu para a adaptação a novas nomenclaturas e alguns trâmites de segurança, fruto das mudanças sociais e econômicas e, até então, não havia ocorrido alterações no que toca a estrutura do Coaf.  

O Conselho já esteve ligado a vários ministérios. Nascido na Fazenda, passou pelo Ministério da Justiça e pelo da Economia. Pela MP 893/98 (o Coaf transformado) a UIF passa a ficar sob o controle administrativo do Banco Central, com uma estrutura e composição bastante alterada, sobretudo pelo descarte dos critérios técnicos para a composição do (novo) Conselho Deliberativo e do Quadro Técnico Administrativo.

A presidência e o membros do Conselho Deliberativo da UIT – entre 8 e 14 conselheiros - serão escolhidos e designados pelo Presidente do Banco Central do Brasil (§1º e incisos do Art. 5º da MP 893/19) e os requisitos necessários se restringem à: cidadania brasileira, reputação ilibada e reconhecidos conhecimentos em matéria de prevenção e combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismos, ou ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa (Art. 5º, caput, MP 893/98). Quanto ao quadro Técnico-Administrativo poderão ser escolhidos e designados: ocupantes de cargos em comissão e funções de confiança; servidores, militares e empregados cedidos ou requisitados e; e servidores efetivos.

Aberto espaço para indicações políticas e descaracterizada a autonomia, condições primárias contidas nas 40 recomendações do Gafi para o combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo, a permanência do Brasil no Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro e o Financiamento ao Terrorismo – Gafi/FATF - entra em risco frente a uma possível suspensão. Tal cenário pode, até mesmo, colocar o país na lista daqueles com deficiências estratégicas e de alto risco para investidores. Agravante a essas circunstâncias, acumula-se, ainda, a exposição a punições econômicas impostas pelo G20, FMI e Banco Mundial.

O Presidente Jair Bolsonaro declarou publicamente que, para compor o UIF “a ideia é ser o pessoal concursado do banco Central. Se tiver erro, a gente corrige”.

Prefiro acreditar que tenha sido sincero e espero, ansiosamente, que, reconhecido o erro, engano ou equívoco o presidente cumpra com a sua palavra e corrija-o. Que seja retirada a vulnerabilidade da composição da UIF e do seu Conselho Deliberativo a indicações políticas, e que retorne o critério para sua composição apenas por servidores de carreira.

Hoje, ouve-se falar muito que isso ou aquilo é “de raiz” ou é “Nutella” para diferenciar o autêntico e confiável, do que é “doce” e artificial. Sem banalização, até porque o assunto é sério, fico torcendo para que o Coaf ou o UIF (re)tomem a condição “de raiz”.

[1] Item 126 da Exposição de motivos do Anteprojeto da Lei nº 9.613/98
[2] Idem, item 128
[3] Idem, item 129

(*) Gloria Faria é advogada, sócia do escritório MOTTA, SOITO & SOUSA Advocacia Empresarial, Organizadora da Revista Jurídica de Seguros da CNseg.

(21.08.2019)