Conflito de interesses: tratamento legal e definição na previdência complementar fechada

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Por Aparecida Pagliarini[1] e Danilo Ribeiro Miranda Martins[2]

O conflito de interesses é objeto de especial preocupação no direito societário ao menos desde a edição da Lei nº 6.404/1976 (Lei de Sociedades Anônimas - LSA), que trouxe uma disposição específica voltada para a temática, conforme se extrai do seu artigo 156.

Apesar de não adotar essa mesma terminologia, verifica-se que a Lei Complementar nº 109/2001 também se ocupou de se precaver quanto a situações em que o conflito de interesses estaria evidente, como se verifica do teor do seu artigo 71.

Mas foi com a edição da Resolução CGPC nº 13/2004, que trouxe para as EFPCs a obrigação de observar as boas práticas de governança corporativa, que o assunto ganhou maior relevância. Há, na referida norma, menção ao conflito de interesses em seus artigos 3º, 4º, § 3º e 10, instituindo obrigações que perpassam toda a estrutura de governança da EFPC, o que demonstra a relevância conferida ao tema.

Apesar disso não há notícias de uma atuação mais assertiva por parte da PREVIC quanto a esse aspecto. Não se extrai dos julgamentos da Autarquia e da Câmara de Recursos da Previdência Complementar - CRPC debates mais aprofundados ou análises específicas quanto às situações configuradoras de conflito, mesmo passados mais de 20 anos de vigência da Resolução CGPC º 13/2004.

As poucas situações objeto de alguma análise, aparentemente, decorreram em sua maioria de consultas formuladas à Autarquia, conforme se extrai do Ementário da Procuradoria da PREVIC (item 8.1)[3] . Não se sabe, porém, sequer se essas manifestações (de cunho meramente orientativo, não decisório) foram acatadas ao final pela Diretoria Colegiada da Autarquia.

Trata-se, portanto, de situação diametralmente oposta à do mercado de capitais, supervisionado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em que há uma profusão de decisões e julgamentos que permitem delinear com maior precisão os contornos do conflito de interesses naquele ambiente.

Embora não seja simples a tarefa de identificação das situações de conflito de interesses, é imperioso que se construa, na previdência complementar fechada, parâmetros para uma interpretação mais objetiva do que seja o conflito de interesses envolvendo uma EFPC.

Interessante notar que enquanto a LSA busca definir as situações de conflito de interesses envolvendo acionistas e administradores (arts. 115 e 156), a Resolução CGPC nº 13/2004 aborda potenciais conflitos envolvendo conselheiros, diretores, empregados e até prestadores de serviços.

Em todas essas disposições, contudo, há um sentido único que pode ser extraído e que serve de base para a melhor compreensão do instituto.

Tem-se, assim, de um lado o interesse particular de determinada pessoa que desenvolve uma função em uma instituição; e, de outro, o interesse dessa mesma instituição, consubstanciado na comunhão de esforços voltados para determinado fim.

O interesse é o proveito, a vantagem ou a utilidade que se pode extrair de determinada situação. Esse proveito tem de ser concreto, real, palpável, e não hipotético ou imaginário, visto que estes pertencem ao plano metafísico, sem consequências na órbita do direito.

No que concerne ao interesse da instituição, se nas empresas ele é refletido no objetivo primordial de auferir lucro, no caso das EFCPs a própria Lei cuidou de estabelecer que elas “têm por objetivo principal instituir e executar planos de benefícios de caráter previdenciários” (art. 2º, LC nº 109/2001). Em outras palavras, visam pagar benefícios previdenciários diante de situações de riscos sociais previamente definidos.

Não basta, porém, que existam o interesse particular e o interesse da instituição. É necessário que haja o conflito, ou seja, o choque, a disputa, o confronto entre tais interesses.

É possível, portanto, que exista o interesse particular (por exemplo, o interesse do administrador de ser adequadamente remunerado) e o interesse da instituição (de pagar tempestivamente todos os benefícios previstos no regulamento) e que esses interesses estejam alinhados. Nada há de errado nisso.

Desse modo, exceto nas hipóteses em que a Lei houver previsto expressamente que o conflito é presumido (por exemplo, nos casos descritos no artigo 71 da LC nº 109/2001) o confronto entre o interesse particular e o interesse da instituição precisa ser comprovado, demonstrado. Não pode ser suposto ou pressuposto. Há de ser concreto, real, indubitável.

Destarte, faz-se necessário que se identifique a ação ou omissão do conselheiro, diretor, empregado ou prestador de serviços que tenha sido apta a comprometer o objetivo da EFPC de promover o pagamento dos benefícios previdenciários. Deve-se, ainda, identificar qual vantagem ou proveito particular se almejou para tomar tal atitude.

Ressalte-se que, para sua configuração, basta que a vantagem seja almejada, mesmo que não se obtenha êxito ao final. Tampouco se faz necessário que da ação ou omissão decorra efetivo prejuízo para o plano de benefícios ou para a EFPC, bastando que possa resultar em prejuízo.

Também não é necessário que o conflito de interesses seja permanente, podendo ter repercussões jurídicas ainda que seja meramente esporádico ou eventual.

No processo decisório de investimentos o conflito de interesses (tratado como um dos vários riscos a serem monitorados pela gestão da EFPC) mereceu no artigo 12 da Resolução CMN nº 4994/2022 o seguinte tratamento:

Art. 12. A EFPC deve avaliar a capacidade técnica e potenciais conflitos de interesse de seus prestadores de serviços e das pessoas que participam do processo decisório, inclusive por meio de assessoramento.

Parágrafo único. O conflito de interesse será configurado em quaisquer situações em que possam ser identificadas ações que não estejam alinhadas aos objetivos do plano administrado pela EFPC independentemente de obtenção de vantagem para si ou para outrem, da qual resulte ou não prejuízo.

Em um momento em que se discute uma eventual revisão das diretrizes de investimentos, entendemos oportuno apresentar as seguintes considerações, visando agregar algumas reflexões que possam permitir o aprimoramento do normativo:

 →  “a EFPC deve avaliar”: a EFPC é uma pessoa jurídica que age por meio de pessoas naturais. Mais apropriado seria dizer que “os administradores da EFPC devem avaliar”, especificando a quem compete tal responsabilidade;

 →  “deve avaliar a capacidade técnica e potenciais conflitos de interesse de seus prestadores de serviços”: considerando que os interesses podem ser de várias ordens, mais adequado utilizar o plural. Ademais é necessário que haja mais de um interesse para que conflitem;

 → “de seus prestadores de serviços e das pessoas que participam do processo decisório”: a redação pode deixar dúvida se está tratando de conflito de interesses das duas “classes” de pessoas mencionadas ou de conflito entre elas;

  → “pessoas que participam do processo decisório”: deve ficar claro que tal responsabilidade se dá na “medida de suas atribuições”, em linha com o que preveem os §§ 1º e 2º do art. 4º da Resolução;

 → “inclusive por meio de assessoramento”: quem assessora não toma decisão, sendo certo que a maior parte dos profissionais que desenvolvem tal assessoramento normalmente possuem órgão responsável pela fiscalização da sua atividade, regida usualmente por regras próprias, cuja aplicação extrapola a competência da PREVIC. Exemplos: advogados (OAB), consultores de investimentos (CVM), contadores (Conselho Regional de Contabilidade), etc.;

 → “quaisquer situações em que possam ser identificadas ações”: não só as ações, mas também as omissões são passíveis de responsabilização. Além disso, a menção a “quaisquer situações” pode sugerir estar contemplando hipóteses em que não se identifique proveito ou vantagem particular específica, ainda que potencialmente;

 → “independentemente de obtenção de vantagem para si ou para outrem”: a vantagem deve ser ao menos almejada, a fim de justificar a atuação estatal. Ademais, devem ser identificadas condutas que demonstrem esse intuito, pois a existência de interesse particular e concreto constitui pré-requisito para a configuração do conflito;

 → “da qual resulte ou não prejuízo”: embora o prejuízo possa ser meramente potencial, deve ser demonstrado em que medida a ação ou omissão poderia prejudicar os objetivos da EFPC. Do contrário, sequer há que se falar em conflito.

O tema é complexo e ainda permeado por incertezas. Mas não se pode depender apenas do Estado para dirimi-las, devendo ser destacado também o relevante papel dos órgãos de administração que, pautados por elevados padrões éticos e de integridade, devem estabelecer uma Política de Relacionamento, o que auxiliará no desenvolvimento das melhores práticas e no tratamento de situações que possam gerar qualquer tipo de dúvida.

[1] Advogada formada pela Universidade de São Paulo especializada em previdência complementar, membro do Conselho Deliberativo do IPCOM - Instituto de Previdência Complementar e Saúde Suplementar.

[2] Procurador Federal da Advocacia-Geral da União, mestre em direito previdenciário pela PUC-SP, MBA em Finanças pelo IBMEC, membro do IPCOM. Foi Procurador-Chefe da Superintendência Nacional de Previdência Complementar - PREVIC.

[3] Disponível em: <https://www.gov.br/previc/pt-br/noticias/ementario-da-procuradoria-federal-junta-a-previc>. Acesso em 09.12.2024.

(10.12.2024)