Por Cassio Gama Amaral e Vanessa Fiusa
No dia 25 de setembro de 2018, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou o Parecer de Orientação nº 38 (Parecer), que trata dos deveres fiduciários dos administradores no âmbito dos contratos de indenidade celebrados entre as companhias abertas e seus administradores. O novo Parecer complementa as orientações divulgadas pela CVM, em 28 de fevereiro de 2018, por meio do Ofício-Circular/CVM/SEP/Nº02/2018.
O Parecer reconhece o valor dos contratos de indenidade como instrumentos de atração e retenção de profissionais qualificados, ressalvando a preocupação com o impacto patrimonial que tais acordos podem trazer às companhias. Para a CVM, diferentemente do que ocorre com os contratos de seguro para a responsabilidade civil de diretores, conselheiros e administradores (Seguro D&O), em que a companhia assume o compromisso de pagar o prêmio em contraprestação à garantia prestada aos seus diretores por um terceiro (a seguradora), nos contratos de indenidade a companhia se associa ao risco financeiro individual do administrador relativo à investigação ou ação de responsabilidade de que seja alvo.
Nesse contexto, embora o Parecer de certa forma equipare ambas as modalidades de garantia, vale lembrar que as apólices de Seguro D&O contêm limites, condições e exclusões específicas, conforme prática do mercado e/ou regulamentação aplicável (Circular SUSEP nº 553, de 23 de maio de 2017). Por exemplo, o Seguro D&O exclui de sua cobertura danos punitivos ou perdas decorrentes de processos e/ou procedimentos instaurados antes da vigência da apólice – tipos de garantia que podem ser previstas no contrato de indenidade.
Por outro lado, as apólices de Seguro D&O preveem a possibilidade de reembolso das despesas e indenizações pagas pela companhia para manter indenes seus administradores, naquilo que o mercado securitário chama "Cobertura B" ou Side B coverage. Assim, as perdas arcadas pela companhia em benefício dos seus administradores no âmbito dos contratos de indenidade podem ser indenizadas pelo Seguro D&O, respeitadas suas limitações de cobertura.
É recomendável que as companhias, ao contratarem ou renovarem seus Seguros D&O, sempre analisem o clausulado e as coberturas securitárias, vis-à-vis as condições dispostas nas cartas de indenidade, para que, na medida do possível e contratado, se garanta o reembolso das perdas por elas arcadas, por meio da Cobertura B. Também se recomenda que os contratos de indenidade contenham previsões que, quando viáveis, supram as lacunas de cobertura das apólices de seguro.
Os Seguros D&O e os contratos de indenidade podem ter funções complementares e sua coexistência se mostra como uma importante salvaguarda para os administradores no exercício de suas funções de administração e representação das companhias.
Assim, considerada a preocupação com o aumento da exposição das companhias ao assumirem obrigações de indenidade, o Parecer traz orientações aos administradores e ao mercado a respeito do processo de elaboração, aprovação e execução de tais contratos, de forma a conferir equilíbrio à proteção patrimonial da empresa e de seus gestores, além de garantir que estes atuem conforme os padrões de conduta deles esperados e exigidos por lei.
Atos e despesas passíveis de indenização
No Parecer, a CVM deixa claro que não vê óbice legal à previsão, nos contratos de indenidade, da indenização das despesas suportadas pelos administradores em razão de seu cargo ou função. Entretanto, de forma a evitar a criação de incentivos para que os administradores pautem suas condutas em desacordo com padrões esperados e exigidos por lei (moral hazard), o Parecer destaca o entendimento de que atos praticados pelos administradores (a) fora do exercício de suas atribuições; (b) com má-fé, dolo, culpa grave ou mediante fraude; ou (c) em interesse próprio ou de terceiros, em detrimento do interesse social da companhia, não são passíveis de indenização (atos estes que também estão normalmente excluídos da cobertura do Seguro D&O).
Além disso, o Parecer não restringe que se preveja a antecipação de despesas nos contratos de indenidade. Nesses casos, o órgão da companhia responsável pela análise sobre o adiantamento deve decidir com base no conjunto fático-probatório disponível no momento da deliberação sobre sua concessão.
Nesses casos, a instrução é de que eventual decisão preliminar pelo adiantamento não vincula novo juízo a ser realizado pelo órgão competente da companhia após o final do processo no âmbito do qual o administrador é responsabilizado. Ademais, caso a companhia delibere pelo adiantamento de despesas antes de decisão final, esta poderá rever o pagamento ou mesmo buscar seu ressarcimento, caso reste comprovado que o administrador incorreu em atos não passíveis de indenização. Em um cenário como este, a CVM alerta que o administrador estará obrigado a devolver os valores adiantados, uma vez comprovada a conduta.
Decisão sobre a concessão de indenização
Outro ponto relevante trazido pelo Parecer refere-se à governança a ser adotada pelas companhias, especialmente com relação aos riscos de conflito de interesse inerentes aos contratos de indenidade.
Nesse contexto, é dever das companhias adotar medidas capazes de garantir que as decisões referentes ao dispêndio de recursos sejam tomadas com independência e sempre no melhor interesse da companhia, devendo, inclusive, ser observada a razoabilidade dos valores envolvidos e a adequada avaliação para a concessão de indenização.
Em função disso, os contratos devem estabelecer regras claras e objetivas, especificando: (a) o órgão da companhia que será responsável por avaliar se o ato do administrador seria indenizável; e (b) os procedimentos adotados para afastar deste processo de avaliação os administradores cujas despesas indenizáveis estiverem sob análise, nos termos do artigo 156 da Lei das Sociedades por Ações.
Ademais, a CVM entende que procedimentos adicionais de governança (como o encaminhamento para deliberação em assembleia geral), devem ser considerados pelas companhias nas situações em que: (a) mais da metade dos administradores sejam beneficiários diretos da deliberação sobre o dispêndio de recursos; (b) houver divergência de entendimento sobre o enquadramento do ato do administrador como passível de indenização; ou (c) a exposição financeira da companhia se mostre significativa, considerando os valores envolvidos.
Termos e condições do contrato
O Parecer destaca, ainda, a importância da adequada divulgação dos termos e condições dos contratos de indenidade, de modo que os acionistas possam avaliar as possíveis consequências patrimoniais para a companhia e tomar as providências que entenderem cabíveis a respeito.
Nesse tocante, a CVM entende que o envolvimento dos acionistas na decisão sobre a celebração de contratos de indenidade - por meio, por exemplo, da inclusão de disposição estatutária sobre o tema ou da submissão dos termos e condições gerais da minuta do contrato à assembleia geral – tem o potencial de mitigar as preocupações com conflito de interesses e impactos no patrimônio da companhia.
Adicionalmente, a CVM recomenda que, no mínimo, as seguintes informações sejam divulgadas pela companhia [1]: (a) se há previsão estatutária sobre a indenidade e, em caso afirmativo, seus termos; (b) se o contrato deverá prever valor-limite para a indenização oferecida e, em caso positivo, qual é esse valor; (c) o período de cobertura que poderá ser abrangido pelo contrato; (d) os administradores que poderão celebrar contratos de indenidade com a sociedade; (e) as hipóteses excludentes do direito à indenidade; (f) as despesas que poderão ser pagas, adiantadas ou reembolsadas; e (g) os procedimentos relativos às decisões quanto ao pagamento, reembolso ou adiantamento de despesas decorrentes do compromisso de indenidade, indicando: (i) o órgão da companhia responsável pelas decisões referentes à sua concessão; e (ii) as regras e os procedimentos que serão adotados para mitigar conflitos de interesses, garantir a independência das decisões e assegurar que sejam tomadas no interesse da companhia.
O Parecer também considera desejável que a celebração do contrato de indenidade seja respaldada por prévio parecer elaborado pela Diretoria e aprovado pelo Conselho de Administração, em que se descreva os fundamentos pelos quais os órgãos entendem que os termos e condições fixados no contrato mitigam os riscos de conflito de interesses inerentes a esse tipo de contratação e equilibram os interesses da companhia.
Depois de assinados os contratos de indenidade, o Parecer recomenda que seus aditivos e eventuais documentos que também reflitam os termos e condições aplicáveis ao regime de indenidade – como atas e anexos – sejam encaminhados em até 7 (sete) dias úteis a contar da data de sua assinatura, ao sistema eletrônico disponível na página da CVM na rede mundial de computadores.
Por fim, enquanto não houver disposição específica na regulamentação da CVM, as companhias devem disponibilizar os documentos e as informações atinentes ao tema conforme orientação a ser expedida pela Superintendência de Relações com Empresas (SEP), cabendo ressaltar que a CVM já criou a categoria "Contratos de Indenidade", no Módulo IPE do Sistema Empresas.NET, para o envio dos referidos contratos.
Aplicação e efeitos do Parecer
Cabe ressaltar que o cumprimento formal das orientações contidas no Parecer não afasta a possibilidade de responsabilização dos administradores, caso a CVM verifique, na supervisão de casos concretos, que sua atuação não atendeu às finalidades e aos objetivos regulatórios nele dispostos.
Ressaltamos que a CVM observará, na aplicação do Parecer, o art. 2º, parágrafo único, XIII da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que veda a incidência retroativa de nova interpretação para decisões administrativas, e do Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, conforme alterado pela Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, que dispõe sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.
[1] Apesar de o Parecer não especificar o local de divulgação das informações mínimas, o Formulário de Referência, observadas as orientações do Ofício-Circular/CVM/SEP/Nº02/2018, se mostra como o documento mais adequado para a realização da divulgação de tais informações.
Fonte: Mattos Filho, em 05.10.2018.