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A ameaça à sustentabilidade dos planos de saúde corporativos: o desafio de equilibrar a equação “a oferta do benefício, a viabilidade financeira-atuarial e as demandas judiciais em um ambiente inóspito”

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Por Marco Pontes (*)

Pontes

O tema “assistência médica” é polêmico. Entra ano e sai ano, o tema volta com vigor. A decisão do STJ reforça a tese de que não sairá da agenda dos gestores das organizações tão cedo. Afeta a ANS, os empresários do setor, as empresas que patrocinam planos de assistência, os gestores das áreas de controladoria, finanças e recursos humanos, os sindicatos, as firmas de auditoria, o Poder Judiciário e, finalmente, o consumidor, cidadão comum, lado mais fraco dessa intrincada equação.

A raiz do problema surgiu no governo FHC, quando o então ministro Serra capitaneou a Lei para o setor. Sem dúvida, havia necessidade de regulamentação, face às anomalias que existiam. Muitos especialistas defendem a tese de que se faz necessária uma revisão na Lei 9.656/1998 a fim de que possa atender aos novos anseios da sociedade, visto que, quando se observa uma elevação nos questionamentos judiciais e a criação de tensões entre as partes que envolvem o contrato, é chegado o momento de analisar profundamente as modificações que são necessárias de se implementar, de modo que seja possível retornar a um ambiente estável que privilegie a segurança jurídica do contrato, sob a perspectiva de relação contratante x contratado.

A relação conflituosa acaba de atingir um limite perigoso, após dois episódios recentes. O primeiro é a ideia de adoção do voucher da saúde que começa a ser cogitado pela equipe econômica, o que certamente será um retrocesso se for adotada. A segunda é a decisão proferida pelo STJ, que em 19 de fevereiro de 2021 fixou três teses para balizar quais condições assistenciais e de custeio do plano de saúde devem ser mantidas para beneficiários inativos, nos termos do artigo 31 da Lei 9.656/1998. As teses fixadas foram as seguintes:

a) “Eventuais mudanças de operadora, de modelo de prestação de serviço, de forma de custeio e de valores de contribuição não implicam interrupção da contagem do prazo de dez anos previsto no artigo 31 da Lei 9.656/1998, devendo haver a soma dos períodos contributivos para fins de cálculo da manutenção proporcional ou indeterminada do trabalhador aposentado no plano coletivo empresarial”.

b) “O artigo 31 da Lei 9.656/1998 impõe que ativos e inativos sejam inseridos em plano de saúde coletivo único, contendo as mesmas condições de cobertura assistencial e de prestação de serviço – o que inclui, para todo o universo de beneficiários, a igualdade de modelo de pagamento e de valor de contribuição, admitindo-se a diferenciação por faixa etária, se for contratada para todos –, cabendo ao inativo o custeio integral, cujo valor pode ser obtido com a soma de sua cota-parte com a parcela que, quanto aos ativos, é proporcionalmente suportada pelo empregador”.

c) “O ex-empregado aposentado, preenchidos os requisitos do artigo 31 da Lei 9.656/1998, não tem direito adquirido de se manter no mesmo plano privado de assistência à saúde vigente na época da aposentadoria, podendo haver a substituição da operadora e a alteração do modelo de prestação de serviços, da forma de custeio e dos respectivos valores, desde que mantida paridade com o modelo dos trabalhadores ativos e facultada a portabilidade de carências”.

Caso não seja bem debatida, essa decisão pode desencadear um efeito contrário, isto é, a cessação do patrocínio das empresas nos planos de assistência médica corporativos ou a adesão à ideia da equipe econômica. É sempre bom lembrar o que aconteceu com os planos individuais. O que se vê hoje é uma oferta extremamente escassa, que é explicada pela forma como o Estado determinou o modelo de operação e controle dos preços. A forma proposta pela ANS fez com que as operadoras abortassem a comercialização dos planos individuais. Deixou de ser lucrativo. Simples assim. No capitalismo, não há espaço para desperdício.

A inflação é apenas um dos fatores que contam na estrutura de formação de preços, dentre os quais também se destacam a implementação de novas tecnologias, a ampliação do rol de procedimentos por parte da ANS, o aumento de ganhos dos intermediários, dos hospitais, dos laboratórios mais qualificados, objeto de desejo de todos, e a fraude.

O que determina o custo final ao consumidor é o comportamento da sinistralidade, após toda a cadeia de valores que mencionei acima ser remunerada. A operadora não é a vilã desse estado de coisas. Ela apenas distribui o custo entre os consumidores, depois de pagar seus custos e acrescentar o lucro que julga ideal para manter a operação. Portanto, como podemos observar, a relação que rege os aumentos dentro do princípio da boa técnica atuarial é a sinistralidade ou a utilização do plano. O Estado não poderia ou deveria impor o ônus à iniciativa privada que não tem condições de absorver uma demanda cada vez maior. O Estado tem o dever de cumprir sua parte. Tal responsabilidade está contida na Carta Magna como sendo sua. É dever!

Os maiores responsáveis por esse estado de coisas não são a ANS, o Judiciário e muito menos as empresas ou os empregados ativos e inativos, mas os membros dos Poderes Executivo e Legislativo que arquitetaram um projeto contrariando o bom senso e a racionalidade financeira-atuarial. Sobreviveram à catástrofe de decisões, os planos coletivos que agora podem acabar sendo inviabilizados, se não houver bom senso por parte dos envolvidos no tema.

Entretanto, a partir da adoção do IFRS no Brasil, as empresas se viram com um dilema: reconhecer os compromissos com o plano de assistência médica à luz dos artigos 30 e 31 da Lei n° 9.656/1998.

Mas, afinal, por que as empresas passaram a assumir o custo integral do plano de assistência médica, e qual é a origem do compromisso da empresa com esse plano? A resposta se encontra nos artigos 30 e 31 da Lei n° 9.656/1998, na forma como regulamentados pela Resolução Normativa ANS n° 279/2011.

Ambos os dispositivos, no caso de rescisão do contrato sem justa causa, asseguram ao empregado – e a seus dependentes – o direito de manter sua condição de beneficiário do plano, nos mesmos termos de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral. Essa garantia gera uma obrigação da empresa em relação ao plano de assistência médica, que deve ser apurada e controlada para fins de atendimento às regras do IFRS que passaram a ser as regras locais de contabilização.

Nesse contexto, é importante destacar que, independentemente de o plano ter sido modelado na categoria de pré-pagamento, pós-pagamento ou decorrente de outras combinações, a única condição para que a empresa fique exposta a esse risco financeiro-atuarial é o fato de o empregado, na fase laborativa, ter participado no custo da contraprestação. Eu penso que há controvérsias. Em contraste ao entendimento de que a assunção do custeio integral do plano de assistência médica elimina o passivo, vem aumentando o número de atuários e contadores que entendem que o fato gerador do passivo não é o pagamento integral ao plano feito pela empresa, mas o benefício econômico ao qual a empresa fez jus, enquanto ele foi empregado.

Outra solução comumente utilizada pelas empresas para reduzir a obrigação com o plano de assistência médica foi a utilização da tabela de faixa etária, para a qual se alegava que os empregados das faixas mais elevadas estavam pagando por seu risco correspondente. A precificação dos planos passou a ser feita a partir do risco das faixas etárias mais elevadas para os mais jovens, contrariando a intenção do regulador. Provavelmente aqui reside uma das razões para o Judiciário ter tomado uma medida tão drástica.

A obrigação das empresas surgiu por conta de dois artigos na Lei. O artigo 30 da Lei n° 9.656/1998 se aplica aos ex-empregados, demitidos sem justa causa ou aposentados, que tenham contribuído com o plano de saúde, e lhes assegura o direito de permanência no plano pelo período mínimo de 6 meses até um máximo de 24 meses. Já o artigo 31 do mesmo diploma legal garante aos ex-empregados demitidos ou aposentados que tenham contribuído pelo prazo mínimo de 10 anos a possibilidade de manutenção do plano de saúde por prazo vitalício.

Adicionalmente, caso o indivíduo venha a se aposentar na empresa, tendo contribuído por um prazo inferior a 10 anos, lhe é assegurada a manutenção no plano à razão de 1 ano para cada ano de contribuição. As garantias legais são estendidas ao grupo familiar dos titulares nas mesmas condições que o plano era oferecido ao titular quando atuava pela empresa. Em outras palavras, não pode haver perdas de garantias ou downgrade do plano.

A origem do compromisso da empresa é gerada pelo fato de o ex-empregado continuar utilizando o plano de assistência médica. Mesmo arcando com o pagamento integral, o fato de usar o plano, por si só, afeta a sinistralidade. Como o reajuste dos planos coletivos de assistência médica leva em consideração a sinistralidade, a empresa acaba pagando um subsídio cruzado, gerado pela utilização daqueles que dela já se desligaram, mas que continuam gozando do benefício, bem como daqueles que ainda estão no plano e que, eventualmente, conquistarão o direito de, ao serem demitidos sem justa causa ou aposentados, seguir constando da apólice coletiva.

Já que não é possível aplicar o reajuste do plano exclusivamente para a população de ex-empregados, os desequilíbrios de fluxos financeiros – i.e., as diferenças entre as receitas e despesas médicas do grupo de ex-empregados – ocorrem e acabam sendo financiados tanto pelos empregados em atividade laboral quanto pela própria empresa.

A égide contábil que nos fornece o direcionamento para a mensuração, para o reconhecimento e para a divulgação de benefícios aos empregados é o Pronunciamento Contábil CPC 33 (R1), referendado pela Deliberação CVM n° 695 e alinhado às práticas internacionais de contabilidade – mais especificamente ao IAS-19(R1). Contudo, o universo de empresas antes restrito apenas às companhias de capital aberto foi estendido às empresas abrangidas pela Lei n° 11.638/07 a partir de 2015, quando a Receita Federal adotou as IFRS. Logo de início, o Pronunciamento em questão estabelece que: 

“[o] objetivo deste Pronunciamento é estabelecer a contabilização e a divulgação dos benefícios concedidos aos empregados. Para tanto, este Pronunciamento requer que a entidade reconheça: (a) um passivo quando o empregado prestou o serviço em troca de benefícios a serem pagos no futuro; e (b) uma despesa quando a entidade se utiliza do benefício econômico proveniente do serviço recebido do empregado em troca de benefícios a esse empregado.”.

Isso significa que o risco de subsídio cruzado é categorizado perante o CPC 33 (R1) como um benefício pós-emprego na forma de um benefício definido, uma vez que os fluxos futuros de despesas não serão fixos e dependerão do desenvolvimento futuro e de eventos probabilísticos financeiros e demográficos.

A contabilização de planos de benefício definido envolve a utilização de técnica atuarial. A norma exige o emprego do método de crédito unitário projetado a fim de estimar, de maneira confiável, o custo final, para a entidade, do benefício obtido pelos empregados em troca dos serviços prestados nos períodos anteriores e corrente. Isso exige que a companhia determine quanto do benefício deve ser atribuível aos períodos anteriores e corrente e que faça estimativas (premissas atuariais) acerca das variáveis demográficas – e.g., rotatividade e mortalidade de empregados – e financeiras – e.g., futuros aumentos nos salários e nos custos médicos – que afetarão o seu custo.

Portanto, devemos lembrar que os planos de assistência médica, nos moldes destacados na introdução deste artigo, para fins de atendimento às regras do CPC 33 (R1), apresentam-se como benefícios garantidos, com período de aquisição anterior ao período de usufruto, e que, nesse diapasão, seu pagamento depende da ocorrência de eventos probabilísticos e de premissas biométricas e financeiras durante o período de aquisição (regime de competência) e de usufruto (direito alcançado). Por essa razão, o estudo atuarial deve abranger não somente a população de ex-empregados e aposentados optantes pela manutenção do plano corporativo, mas também a população de atuais ativos, uma vez que estes serão os futuros ex-empregados e/ou aposentados. A aplicação de qualquer restrição quanto ao contingente de expostos ao risco não encontra fundamento nos princípios contábeis estabelecidos pelo CPC 33 (R1), tampouco na boa prática atuarial, a qual abarca metodologias e ferramentas para realizar as estimativas desses compromissos de longo prazo, associados ao risco de subsídio cruzado dos planos de assistência médica de forma confiável, de modo a aderir ao perfil da base de dados dos participantes ou segurados no plano de assistência médica, respeitando, assim, os postulados supramencionados.

Por outro lado, desde a adoção do Pronunciamento Técnico CPC 33 (R1), muitas empresas assumiram o custeio integral, como forma de evitar o aparecimento do compromisso nas Demonstrações Financeiras e de ter o Resultado corroído. A decisão do STJ joga uma pá de cal nessa alternativa, como podemos depreender.

Por essa razão, temos convicção de que, apesar de os custos médicos tenderem à elevação nos próximos anos por fatores diversos, o passivo atuarial não terá o mesmo comportamento. Diante desse fato, concluímos que, na maioria das vezes, é melhor para a empresa manter o empregado participando do custeio do que assumir o pagamento integral do custeio, especialmente no atual cenário econômico. O principal argumento que consideramos para concluir dessa forma é a economia que a participação do empregado no custeio traz para empresa, liberando-a para fazer investimento, sem que o valor do Passivo afete o Resultado da companhia de forma tão severa.

Tendo em vista a questão da judicialização da saúde no Brasil – conjugada com a dura realidade de aumentos abruptos dos custos dos planos de assistência médica por conta do aumento da sinistralidade –, cremos que as empresas devem investir fortemente em ações direcionadas para uma melhor gestão de seus programas.

Nesse sentido, há muito que fazer. Nós atuários e auditores, que estamos diretamente envolvidos na questão, não podemos nos transformar nos algozes das empresas, contribuindo para inviabilizar a manutenção do plano de assistência médica para os empregados ou ex-empregados das companhias que nos procuram por soluções para atender às suas demandas, mas, principalmente, na condição de consultores devemos apontar soluções para quem nos procura.

As ações mais importantes devem estar orientadas para revisão das metodologias de apuração da obrigação atuarial e para educação do usuário. Cuidar dele, antes que se transforme em um paciente. Engajá-los a utilizar o plano de forma racional, incentivando-o a ter responsabilidade e cuidado com a própria saúde, investir em programas integrados e direcionados para acompanhamento do risco e custo relacionado à saúde, tais como: atividade física, medicamentos, nutrição, et cetera; caso contrário, as empresas optarão pela suspensão do benefício ou o problema se transformará em campo fértil para o surgimento de ideias estapafúrdias como é a do bônus saúde proposto pelo Ministério da Economia, que seria a condenação explícita de uma legião de trabalhadores e de idosos ao abandono, tendo como avalista dessa situação o Estado, isto é, aquele que deveria ser o principal agente do bem-estar da sociedade.

Para saber mais sobre o assunto, solicite uma agenda com os nossos consultores.

(*) Marco Pontes fez a startup da área de consultoria atuarial de duas big 4, além de ter atuado em empresas de consultoria de atuação global. Pontes conduziu diversos projetos de consultoria e auditoria atuarial no Brasil e na América Latina. Atualmente é sócio da LGP Consultoria Atuarial & Gestão de Seguros, empresa que fundou em 2009. Dados de contato: marco.pontes@lgpconsulting.com.br

13.05.2021